Frei Tito, 75 anos

por Frei Betto*

Quando secar o rio de minha infância,
Secará toda dor.
Tito de Alencar Lima

A 14 de setembro Frei Tito completaria 75 anos de idade. Ele faleceu em agosto de 1974, em L’Arbresle, no Sul da França, induzido ao suicídio em decorrência das torturas sofridas nos cárceres da ditadura militar.
Na dor de Tito gravou-se o que de mais hediondo produziu a ditadura militar brasileira e, nele, tornado símbolo das vítimas de torturas elencadas no livro Brasil, Nunca Mais (Vozes), reflete-se a indignação de quantos acreditam na política como mediação de utopias libertárias. Preso em novembro de 1969, em São Paulo, acusado de oferecer infraestrutura a Carlos Marighella, Tito foi submetido a palmatória e choques elétricos, no DEOPS, em companhia de seus confrades.

Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontrava em mãos da Justiça Militar, foi retirado do Presídio Tiradentes e levado para a Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-CODI, à rua Tutóia, na capital paulista. Durante três dias, bateram sua cabeça na parede, queimaram sua pele com brasa de cigarros e deram-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, “para receber a hóstia”, gritavam os algozes.    

Fernando Gabeira, preso a lado, tudo acompanhou. Queriam que Tito denunciasse quem o ajudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968, e assinasse depoimento atestando que frades dominicanos participaram de assalto a bancos. No limite de sua resistência, Tito cortou, com a gilete que lhe emprestaram para fazer a barba, a artéria interna do cotovelo esquerdo. Foi socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci.  

As incessantes torturas não abriram a boca do frade dominicano de 28 anos, mas lhe cindiram a alma. Cumpriu-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: “Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de seu silêncio”.

Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço, Giovanni Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária, Tito foi banido do Brasil pelo governo Médici.

De Santiago do Chile rumou para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior. Nas ruas da capital francesa ele “via” o espectro de seus torturadores. Transferido para L’Arbresle, próximo a Lyon, em seu estreito quarto no convento construído por Le Corbusier, Tito estremecia aos gritos do pai espancado no DOPS, gemia aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepiava-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorcia-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufragava em delírios.

No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio pairou sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se movia. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balançava o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda. Do outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Deixou registrado em seus papéis que “é melhor morrer do que perder a vida”.

O testemunho de Frei Tito, descrito em meu livro Batismo de sangue (Rocco), é um grito parado no ar nesses tempos obscuros de um Brasil governado por um genocida indiferente à morte de mais de 100 mil vítimas da Covid-19. Sob esse governo militarizado, mais interessado em fazer a apologia das armas que salvar vidas, relembrar Frei Tito é alertar a consciência brasileira de que é urgente condenar ao passado, com se fez com a ditadura, esse governo comandado por uma família de milicianos corruptos. Temos, sim, uma arma democrática nas mãos para honrar a memória de Frei Tito: votar, nas eleições municipais deste ano, em candidatos progressistas a vereador e prefeito, comprovadamente comprometidos com os direitos humanos e as causas populares.

*Frei Betto é escritor, autor de O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual (Cortez), entre outros livros.

46 anos sem frei Tito de Alencar Lima

Hoje, 10 de agosto de 2020, fazemos memória de 46 anos do martírio de frei Tito de Alencar Lima, OP. Frade, jovem, poeta, escritor, foi barbaramente torturado durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). Também hoje, não passamos apenas por uma crise política, com a já frágil democracia brasileira atacada diariamente, mas também por uma crise sanitária sem precedentes da história recente. Dias atrás chegamos a triste marca de 100 mil mortes causadas por uma única doença.

Um dos membros do Coletivo Frei Tito Vive, Thomaz Ferreira Jensen, escreveu o texto “Ditadura e Resistência, ontem e hoje”, para lembrarmos da figura e a presença resistente de Tito no meio de nós. Também é possível ouvir o podcast CLICANDO AQUI.

*Publicado originalmente no blog luzeirodebate.wordpress.com

De outras vezes já disse: não haverá consolo.
E houve: música, poema, passeatas.
[Adélia Prado, Terra de Santa Cruz]

A força e a coerência do testemunho de resistência à opressão e de ousadia na ação transformadora da realidade brasileira, marcam a trajetória de Frei Tito de Alencar Lima. Resistência e ousadia, base para o perene interesse por sua biografia e justificativa para o Título de Cidadão Paulistano concedido em sua memória em 11 de agosto de 2016, por iniciativa do mandato do vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP).

A trajetória pessoal de Frei Tito já é bastante conhecida pelos brasileiros e está registrada e difundida em livros, filmes e na internet.  Desde 1982, com a publicação de Batismo de Sangue, em que frei Betto dedica um capítulo especial a contar a luta de seu confrade contra a ditadura, e do regresso de seu corpo ao Brasil, em 1983, diversas iniciativas contribuíram para tornar Tito um militante conhecido, reconhecido e assumido como inspiração pelos movimentos sociais, pastorais e sindicais, não apenas no Brasil, mas em toda América Latina.

Mais recentemente, em 2007, o lançamento de Batismo de Sangue, filme dirigido por Helvécio Ratton, baseado no livro homônimo de frei Betto, ampliou consideravelmente a visibilidade e a informação sobre Tito, tema também de uma biografia lançada no primeiro semestre de 2014, Um homem torturado, de autoria das jornalistas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles.

Iniciativas como o seminário Frei Tito e a Revolução Brasileira: Reflexões a partir dos escritos de Tito sobre Resistência à Ditadura, Educação Popular e Socialismo, realizado em agosto de 2014, pelo Coletivo Frei Tito Vive, ajudaram a difundir os escritos políticos e reflexões de Tito, reunidos em publicação virtual.

A entrega do Título de Cidadão Paulistano marcou também os 42 anos de seu martírio e foi ocasião propícia para a reflexão sobre os desafios do Brasil ainda sob o domínio das forças econômicas que desferiram o golpe em 1964 e impedem a superação das estruturas sociais e políticas que mantém a desigualdade no país.

Um ato emblemático por mostrar que, se as marcas da ditadura ainda persistem a nos travar a vida, as resistências se renovam nas pessoas e nas formas de organização, mobilização e luta.

Um ato de reflexão a partir das lutas concretas desenvolvidas coletivamente contra a opressão e a tortura policial que vitima, sobretudo, os jovens da periferia paulistana; pela educação pública, gratuita, de qualidade e com escolas democráticas; pela democracia real, política e econômica, participativa e popular. Um ato para celebrar e animar a luta pela Revolução Brasileira.

A homenagem foi recebida por Vera Lúcia de Alencar Lima, militante de direitos humanos e sobrinha de Tito. “O título é o reconhecimento da luta do Frei Tito pela justiça e liberdade. É uma iniciativa louvável, porque continuamos vendo muitas torturas e prisões, principalmente da juventude negra e pobre. A luta dele continua. Eu recebo esta homenagem em nome dos mortos e desaparecidos pela ditadura e dos milhões de migrantes nordestinos que vivem e trabalham em São Paulo”, disse Vera de Alencar.

Representando o Movimento Mães de Maio, Vera Lúcia Andrade de Freitas, afirmou que a opressão que vitimou Tito continua acontecendo nas periferias. Vera teve o filho de 21 anos assassinado nos chamados “Crimes de Maio”. Entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado de São Paulo, segundo levantamento da Universidade de Harvard, a maioria em situações que indicam a participação de policiais. A maior parte dos casos (505 civis assassinados) fazia parte de uma ação de vingança dos agentes de segurança do Estado contra ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que se concentraram nos dias 12 e 13 de maio.

Entre os mortos, 63% tinham até 25 anos de idade, 50% eram negros, 94% sem antecedentes criminais e 96% eram homens – entre as mulheres assassinadas está Ana Paula Santos, então grávida de nove meses com parto marcado para o dia seguinte. Ao lado do namorado, saiu para comprar comida quando o casal foi abordado por um grupo de encapuzados. Ana Paula tentou proteger o companheiro, imaginando que a gravidez poderia minimizar a agressão, mas acabou sendo morta com cinco tiros, alguns na barriga, que provocaram também a morte do bebê.

Entre os assassinados, 50% foram mortos com mais de três tiros – 10% dos mortos foram alvejados com mais de oito tiros. 60% dos tiros foram dados na cabeça das vítimas. 57% com tiros na parte posterior do corpo.

Os Crimes de Maio são a maior chacina do século 21 no Brasil, e talvez a maior da história do País – nos 21 anos de ditadura, entre 1964 e 1985, 434 pessoas foram mortas pelo Estado. Uma década depois do massacre de 2006, apenas um agente público foi responsabilizado pelas mortes. Condenado, ele responde a recurso em liberdade e continua atuando como policial militar.

O gritante número de assassinatos e o desinteresse da Justiça em punir os responsáveis motivaram a criação do movimento Mães de Maio, formado principalmente por familiares das vítimas do massacre. Mais do que justiça para os próprios filhos, as Mães construíram, ao longo dos anos de atuação e luta, um movimento social de combate aos crimes do Estado ocorridos durante o período democrático, e se transformaram em referência para outras famílias vítimas da violência policial no Brasil.

Erick Borges participou da homenagem representando os estudantes secundaristas em luta e reafirmou a necessidade de se fazer política nas ruas para combater o capitalismo e o sucateamento da educação. As manifestações dos secundaristas surpreenderam pela espontaneidade e pela rapidez com que se ampliaram. Foram ocupações de escolas iniciadas contra a “reorganização” escolar proposta pelo governo do Estado de São Paulo, que pretendia fechar 94 escolas, impactando mais de 311 mil estudantes que teriam que mudar de escola. A primeira ocupação foi numa Escola Estadual na cidade de Diadema, na região do ABC, na noite do dia 9 de novembro de 2015. Dela, se seguiram mais de 200 escolas ocupadas ao longo de 2016. Os protestos, com ocupações e atos de rua – apesar de fortemente reprimidos pela polícia – derrubaram o secretário estadual de educação e culminaram com o adiamento da “reorganização” anunciado por Alckmin.

Como recordou João Xerri, confrade de Tito na Ordem dos Pregadores, e que coordenou a cerimônia na Câmara dos Vereadores, é importante notar que o “crime” que levou Tito de Alencar Lima para os porões da ditadura foi exatamente a organização de um congresso de estudantes, o famoso “congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Ibiúna, em outubro de 1968. Permanências da ditadura, ainda hoje.

O vereador Toninho Vespoli ressaltou que as violações aos Direitos Humanos permanecem no cotidiano do Brasil, através da violência policial, dos golpes políticos, dos preconceitos e da tortura praticada em larga escala dentro do sistema carcerário. A tortura generalizada no Brasil tem raízes nos três séculos de escravidão que vitimaram milhões de trabalhadores, e a tortura política da ditadura exacerbou a prática da tortura contra os pobres, os jovens, os negros. “Não podemos temer tempos sombrios”, afirmou Vespoli.

Militarização da polícia, educação de baixa qualidade e política dominada pelo poder econômico: a permanência mais decisiva e estrutural da ditadura, que nos afeta hoje em diferentes dimensões da vida, é o modelo econômico implantado a partir de 1964, num contexto em que as corporações industriais dos EUA buscavam expandir seu domínio sobre a América Latina, para enfrentar a crescente concorrência das corporações européias reconstruídas no pós II Guerra e barrar o avanço da influência política dos países comunistas.

A entrada das transnacionais na economia brasileira representa um novo deslocamento dos centros de decisão, do Estado para estas empresas privadas. O Estado deixa de ser o ponto de confluência das tensões políticas que condicionam a orientação do desenvolvimento e, posto que essa passa ao controle das transnacionais, o Estado torna-se mero gestor técnico e, sobretudo, um órgão repressivo. Nas palavras precisas de Celso Furtado:

“(…) as grandes empresas norte-americanas terão necessariamente que transformar-se em um superpoder em qualquer país latino-americano. Cabendo-lhes grande parte das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à localização das atividades econômicas, à orientação da tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das economias nacionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais Estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (…) Em realidade, se se consegue subtrair ao Estado grande parte de suas funções substantivas na orientação do processo de desenvolvimento econômico e social, seria de esperar que a atual ‘fermentação’ política, que caracteriza muitos dos países latino-americanos, tenda a reduzir-se, passando os governos a atuar principalmente no plano técnico. (…) Com efeito, a penetração indiscriminada em uma estrutura econômica frágil de grandes consórcios, os quais se caracterizam por elevada inflexibilidade administrativa e grande poder financeiro, tende a provocar desequilíbrios estruturais de difícil correção tais como maiores disparidades de níveis de vida entre grupos da população e rápida acumulação de desemprego aberto e disfarçado. (…) O resultado último seria um aumento real ou potencial das tensões sociais na América Latina. Como as decisões econômicas de caráter estratégico estariam fora do alcance dos governos latino-americanos, tais tensões tenderiam a ser vistas, no plano político local, tão somente pelo seu ângulo negativo. A ação do Estado teria que ser de caráter essencialmente repressivo” (Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, p. 44 e 45).

Como resultado, aprofundam-se a inadequação tecnológica e os efeitos da existência do excesso estrutural de trabalhadores disponíveis: os salários permanecem determinados pelo custo de reprodução da população do campo – agravado pela interrupção da reforma agrária – e, portanto, há concentração de renda, que condiciona a estreiteza do mercado face aos problemas de escala de produção. Por isso, a concentração de renda é pressuposto e resultado do processo e gera agravamento das tensões sociais e a necessidade de repressão política. Daí, a confluência entre o sentido da política econômica operada pelo ministro Delfim Netto e a repressão da Operação Bandeirantes (OBAN), financiada por parte do empresariado paulista.

Ontem, como hoje, o modelo econômico da ditadura é implantado logo nos primeiros meses após o golpe, e pode ser analisado a partir das reformas contidas no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG). O sentido principal do PAEG era adequar o marco institucional ao deslocamento dos centros de decisão, às necessidades das transnacionais – coadunar estabilização política e econômica por meio do vínculo entre militares e tecnocratas. Para isso, realizou reforma fiscal instituindo sistema tributário regressivo para compensar o déficit público, com redução do consumo, notadamente dos trabalhadores; reforma trabalhista que consistiu em arrocho salarial – através de política salarial que substituía as negociações coletivas por índices de reajuste determinados pelo governo; fim da estabilidade no emprego; e, sobretudo, intervenção e repressão política aos sindicatos.

O PAEG completava-se com uma reforma monetária e financeira que, com a desculpa de aumentar a poupança, significou a abertura da economia nacional ao sistema financeiro internacional: fim da lei da usura que estabelecia teto às taxas de juros e flexibilidade para instituições financeiras e empresas captarem recursos fora do país. O resultado de tamanha flexibilização é o mesmo que verificamos com a eclosão da crise de 2007 nos EUA e Europa: estavam colocadas as bases institucionais para a escalada do endividamento externo posterior, que lançaria o Brasil na longa década de estagnação de 1980.

Os resultados do PAEG, portanto, só poderiam ser a concentração de renda, pela queda dos salários reais, e o estreitamento do vínculo do sistema econômico nacional com o sistema financeiro internacional, que viabiliza o financiamento das transnacionais e as remessas de lucros para suas matrizes no estrangeiro.

A partir destas “contrarreformas de base”, pavimentou-se o caminho para a gestão de Delfim Netto na economia durante o governo Médici, os anos do chamado “milagre econômico”, que cabe aqui, brevemente, recuperar em seu sentido mais amplo. Tratava-se de fazer avançar a industrialização fundada na mimetização dos padrões de consumo (bens duráveis), combinado a uma necessária mudança no perfil da demanda através de transferências de renda dos trabalhadores às classes médias mais elevadas, a fim de viabilizar um mercado ao novo padrão de industrialização. Para tanto, expandiu-se o gasto público e o crédito ao consumo das classes médias, via nexos com o sistema financeiro internacional, e aumentou-se a pressão pelo rebaixamento dos salários.

O “milagre” resultou em aumento da concentração de renda e crescimento desproporcional da produção de bens não-duráveis, que estimulou importações igualmente excessivas de bens de capital (máquinas e equipamentos para a indústria), que expressam o nexo das filiais brasileiras das transnacionais com as unidades produtoras de tecnologia no exterior.

A cópia dos padrões de consumo (mimetização) leva a um crescimento econômico que reproduz os mesmos desequilíbrios: supõe e reproduz a concentração de renda nas classes médias para consumirem os automóveis, as geladeiras, as televisões, e o endividamento financia o crescimento do consumo e das importações de bens de capital sem elevar a capacidade de autotransformação do sistema. Em suma, na análise precisa de Celso Furtado, a velha herança colonial se atualiza: dependência e subdesenvolvimento reforçam suas conexões fundamentais.

O ato final da gestão econômica da ditadura foi o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), uma resposta à crise gerada pela elevação do preço do petróleo, que procurava enfrentar os estrangulamentos causados pelo déficit comercial e avançar na indústria de bens de capital e intermediários, tentando reorientar a inserção externa da economia brasileira para a exportação de produtos industrializados. Para isso, o II PND contou com elevação do financiamento público através das estatais e mais concentração de renda para viabilizar investimentos. Gasto público para empresas privadas e repressão sempre caminhando juntos. Ontem, como hoje.

O II PND acirrou a mimetização dos padrões de consumo e a dependência tecnológica e financeira, resultando em aumento do endividamento e das importações necessárias à reprodução desse padrão de industrialização, em total consonância com as estratégias das transnacionais.

Eis o legado da gestão ditatorial: a política econômica torna-se função da reciclagem da crescente dívida externa acumulada no período; as garantias cambiais ao fluxo financeiro retiram autonomia da política cambial; política de subsídios para o setor exportador retira parte da autonomia da política fiscal; endividamento manipulado por instituições financeiras compromete o controle do Estado sobre a liquidez e retira autonomia da política monetária. De forma estrutural, a centralidade do endividamento e a perda de autonomia da política econômica tornam a economia brasileira prisioneira da política monetária dos EUA. A crise da dívida dos anos 80 foi o destino desta marcha da insensatez.

O modelo econômico da ditadura significou, em síntese, a consumação do deslocamento dos centros de decisão em favor das corporações transnacionais e do sistema financeiro internacionalizado. Isso potencializou os desequilíbrios estruturais herdados do período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração de renda – na base da inadequação tecnológica e da mimetização dos padrões de consumo. Há crescimento, mas não desenvolvimento. O Estado – não mais centro de decisão – tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado pelas transnacionais e órgão repressivo para sufocar os conflitos políticos daí decorrentes. O saldo foi o crescimento momentâneo, funcional à transnacionalização produtiva e financeira, e subordinado à política dos EUA; a crise da dívida no momento de reversão da política econômica dos EUA; e duas décadas posteriores de estagnação. Evidentemente, o modelo corroeu as bases da sociabilidade no Brasil e fez avançar a barbárie.

A hegemonia do capital sobre o Estado e o trabalho, resultado de anos de ditadura e propaganda ideológica liberal, fez enfraquecer a contestação sindical e popular ao modelo econômico brasileiro, ao passo que naturalizou o caráter repressor do Estado, fazendo-o prescindir de aparatos clandestinos como a OBAN.

Uma economia crescentemente desnacionalizada, com os centros de decisão das empresas deslocados para o exterior, num contexto de extrema concentração de riqueza nas mãos de um reduzido número de pessoas, com fortunas familiares que superam em muito o PIB da maioria dos países do planeta: eis a correlação de forças do País em que vivemos.

Particularmente, a elite brasileira, completamente desenraizada em seu próprio país, é incapaz de se reconhecer na sofrida história latino-americana e por isso projeta suas raízes nos países do centro do sistema capitalista, de onde importa costumes, valores e modas estéticas e intelectuais. O desenraizamento da elite brasileira determina seu padrão de consumo. E, com conseqüências ainda mais dramáticas, influencia o espelhamento da classe trabalhadora nos padrões globais de consumo e na forma de vida defendida pela elite brasileira. Como escreveu Simone Weil, “o dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar (…). Nada mais claro e simples que uma cifra” (A condição operária e outros estudos sobre a opressão, 1943).

Diante de tamanho desafio, é alentador recorrer à força utópica de Carlos Drummond de Andrade: “Tantos pisam este chão que ele talvez / um dia se humanize (…) / Nossos donos temporais ainda não devassaram / o claro estoque de manhãs / que cada um traz no sangue, no vento” (“Contemplação no banco”, Claro Enigma, 1951).

Hoje, assim como ontem – e sempre – resistência e ousadia: legados de Tito de Alencar Lima!

Frei Tito Vive | Libertem Rafael Braga

por Erick Vinicius Borges
Estudante de Ciências Sociais e pesquisador sobre Frei Tito
Tito de Alencar Lima, frade dominicano, socialista, preso e torturado por 2 vezes, banido do país por lutar em prol de uma sociedade igualitária. O revolucionário viu sua vida, seu corpo e sua mente violada pelas barbáries da Ditadura Militar apoiada pelas grandes indústrias. Viveu a radicalidade do evangelho na epiderme, sofreu, com uma dor contundente todas as consequências de ousar lutar por um mundo melhor. Carregou na sua pele todas as cicatrizes do combate ferrenho a um regime autoritário e inimigo do povo pobre e trabalhador. Enxergava uma efervescência revolucionária tão intensa na vida de Cristo quanto enxergaria em Che Guevara.
O frade resolveu tirar sua própria vida ainda jovem, pois não conseguiu suportar toda barbárie dispensadas sob seu singelo corpo. Não só a tortura física o destruiu por dentro: o revolucionário viveu o fato de não poder tocar mais no território do seu país como uma terceira tortura, afinal, como podia ficar na Europa enquanto a Ditadura Militar massacrava a população brasileira?
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Tito foi uma vítima de uma Estado punitivista e ditatorial, foi preso, torturado e banido pela justiça dos ricos e militares pela sua militância por uma terra sem amos. Infelizmente, Tito não foi o último.
Rafael Braga Vieira, único preso de 2013 que permanece encarcerado, condenado há 11 anos de prisão por portar uma garrafa de Pinho Sol. Negro, periférico e pobre. Fazer memória de Tito é lutar pela liberdade de Rafael Braga, pois ninguém merece ter sua liberdade roubada e arrancada pelo Estado.
Tito foi preso por ser socialista, Rafael Braga foi preso por ser negro. Ambos eram pobres. A justiça numa sociedade em que as pessoas que trabalham mais ganham menos, não pode e nunca será ideal. Lutar pelo fim da injustiça é lutar pelo fim do sistema neo-liberal, e por consequência, do racismo, do machismo, da homofobia. Essa sociedade justa e igualitária era a luta de Tito que, caso tivesse seu sonho concretizado, não daria margem para existência de outros Rafaéis.
*Para conhecer mais sobre Frei Tito, acesse o E-book “Escritos Reunidos de Frei Tito de Alencar Lima’’lançado na celebração de 40 anos de seu martírio.

Debate Ditadura e Resistência, ontem e hoje | Ato de Entrega do Título de Cidadão Paulistano a Frei Tito de Alencar Lima

No dia 11 de agosto de 2016 (quinta-feira), às 19h, ocorrerá, na Câmara Municipal de São Paulo (salão 1º de maio, 1º andar), o debate “Ditadura e Resistência, ontem e hoje”, em motivo do ato de entrega do título de cidadão paulistano a Frei Tito de Alencar Lima. A homenagem é fruto do trabalho do mandato do vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP), e será entregue diretamente à Lúcia de Alencar Lima, sobrinha de Frei Tito e atual diretora do Instituto frei Tito, no Ceará. Também estão confirmados para o debate o coletivo Mães de Maio, Marcela dos Reis, do movimento de ocupação das escolas paulistas, e a atração musical será por conta do grupo “As Despejadas”.

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A força do testemunho de resistência à opressão e de ousadia na ação transformadora da realidade, marcam a trajetória de Frei Tito. Resistência e ousadia são a base para o constante interesse por sua biografia e justificam o Título de Cidadão Paulistano a ele concedido. A trajetória pessoal de Frei Tito já é bastante conhecida pelos brasileiros e encontra-se bem registrada e difundida em livros, filmes e na internet. A entrega do Título marca também os 42 anos de seu martírio e será ocasião propícia para refletirmos sobre os desafios do Brasil ainda sob o domínio das forças econômicas que desferiram o golpe em 1964 e impedem a superação das estruturas sociais e políticas que mantém a desigualdade no país. É um ato de reflexão a partir das lutas concretas desenvolvidas coletivamente contra a opressão e a tortura policial que vitima, sobretudo, os jovens da periferia paulistana; pela educação pública, gratuita, de qualidade e com escolas democráticas; pela democracia real, política e econômica, participativa e popular. É um ato para celebrar e animar a luta pela Revolução Brasileira.

Pela fraternidade universal | Contra todas as formas de violência

O mundo vive sob o signo de uma profunda violência para com o povo, a partir dos avanços do capitalismo e do estado autoritário nas experiências de democracias. No Brasil este cenário de violência é generalizado para as camadas excluídas dos bolsões do capital: sendo a população de rua, os egressos do sistema penitenciário, os encarcerados, a juventude, as populações LGBT’s, as mulheres, os/as indígenas, os/as negros e os/as imigrantes. No campo religioso, a violência é deflagrada por religiões fundamentalistas favorecendo a perseguição às religiões de matriz africana.

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Em 27 de outubro de 1986 na Cidade de Assis, na Itália, reuniram-se centenas de líderes religiosos para uma prece pela paz, de lá para cá essa data vem sendo celebrada e articulada por debates, mesas e reflexões conhecida como Dia do Espírito de Assis. Neste ano, pensamos em articular um grupo de entidades sociais, movimentos populares, pastorais, organizações e grupos ecumênicos em favor da temática que perpassa à todos. Pensamos em um ato de urgência contra toda a forma de violência praticada pelo estado e pelas religiões, a realizar-se em 6 de novembro de 2015. Um ato de união da sociedade pela luta em favor da paz.

Nós, coletivos oriundos das mais distintas essências destes Brasis, na encruzilhada da luta pela dignidade dos mais pobres e marginalizados nos insurgimos num brado forte contra a violência fruto da criminalização das camadas populares. Cremos que o empoderamento do povo se dá nas ruas, articulando-se e forjando denúncias ao sistema que oprime e deixa-nos à miséria. Pensamos que as bandeiras de um país em crise não seja o resgate da economia, mas a opção radical pela dignidade do nosso povo que morre nas esquinas, pela caneta dos poderes executivos, legislativos e judiciários, pela perseguição militar nas favelas, morros e periferias, pelo assassinato de nossos indígenas brasileiros, pelo machismo-patriarcal do homem que mata as mulheres e persegue a diversidade de gênero, pelo encarceramento em massa, pelas filas do SUS, pelo racismo aos nossos terreiros e por toda a qualquer ação que encerre nossas vidas pela violência.

Nossa caminhada percorrerá uma trilha mistagógica, onde alimentados da mística do povo que luta, semeamos um estado laico que acolhe todos e todas na sororidade e na justiça. O povo brasileiro quer poder andar na cidade ou no campo com a liberdade e o direito, semeando a justiça e a resistência.

Nossa voz se levantará pelos prédios do centro de São Paulo num grito de justiça e libertação do nosso povo. Que todas e todos nos unamos, para pedir: #Chegadeviolência. #BastadeCriminalizarOPobre #OEspíritodeAssis #PelaPazcomResistência!

Nosso desejo é a vida do nosso povo: vida bonita, vida justa e vida doada pelas vidas. Somos todas e todos lutadores pela Casa Comum, onde o povo é contra toda forma de violência.

Quando: 6 de novembro (sexta-feira). Local e hora da concentração: Pátio do Colégio, às 17h.

Assinam e convocam:
SEFRAS – Serviço Franciscano de Solidariedade.
Anchietanum.
Rede Marista de Solidariedade.
Católicas Pelo Direito de Decidir.
Pastoral Carcerária Nacional
Conselho Indigenista Missionário – CIMI-SP.
Educafro.
CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs.
JUPROG – Movimento de Judeus Progressistas.
REJU – Rede Ecumênica da Juventude.
MJD – Movimento Juvenil Dominicano.
MIRE – Mística e Revolução.
PJ – Pastoral da Juventude
Pastoral do Povo de Rua – Arquidiocese de SP.
Pastoral Fé e Política – Arquidiocese de SP.
CEBS – Comunidades Eclesiais de Base– SP.
Movimento Jesus Cura a Homofobia.
RUA – Juventude Anticapitalista
CASTO – Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.
KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço.

 

Tito, a Paixão

 por frei Betto (publicado originalmente no livro “Batismo de Sangue”)

Hoje, 10 de agosto, recordamos 41 anos do martírio de frei Tito de Alencar Lima. Temos certeza que Tito, com seus escritos, seus exemplos, seus gestos de amor está vivo e presente em nossas lutas de hoje por um mundo de justiça e paz.

Abaixo está um sensível texto escrito por frei Betto, sobre a “Paixão” de Tito. Uma ótima leitura para fazer memória da vida, luta e morte de nosso querido frei Tito.

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Tudo surpreendentemente calmo. No ar, boiava a expectativa dos próximos minutos. Na prisão, os próximos minutos assustam mais que o feixe de anos de pena. O juiz raciocina em anos, o prisioneiro, em minutos. O próximo minuto pode ser o início de uma fuga, a lâmina de uma faca retalhando a carne, a visita inesperada.

Há cinco dias Frei Tito escrevera a um confrade:

“Muitas vezes somos arrastados para onde não queremos ir. Temo que isso venha a acontecer com o conjuntos da Igreja do Brasil. Se vier, e se for como conseqüência de uma fidelidade e de uma responsabilidade mais profundas ao Evangelho, que seja bem-vinda esta hora.

Na cadeia, tenho descoberto o Evangelho de S. Mateus. O troço tem que ser ou pão ou pedra. Noutras palavras, acho que ele nos convida a sermos simplesmente homens. É impressionante como tantos não-cristãos aqui vivem isso até as últimas conseqüências. Outro dia dizia-me um jovem: “Não falei nada porque fiz a opção e diante dela morrer ou não é secundário”.

Os trabalhos manuais prosseguiam na cela 7 do Presídio Tiradentes: a longa e fina agulha prateada enroscando fios coloridos de lã na tela do tapete, seguindo o desenho projetado; dedos ágeis dando nós em fios de plástico das sacolas de compras; o couro cedendo ao corte e à ponta incandescente do pirógrafo, ganhando a forma de bolsas e carteiras. O ambiente era uma reprodução cênica de uma oficina de artesãos do fim da Idade Média.

Pela manhã, o pequeno grupo de cristãos, entre os cinqüenta habitantes da cela, rezara os salmos. Nestor lera uma passagem do Evangelho, Frei Giorgio fizera o comentário. Sem tristeza, havia aperto em nosso coração. Os minutos eram vagarosos, longos, como em qualquer espera indefinida. As informações, precárias, pedaços incompletos de uma figura recortada: fora preso o dono do sítio em que a UNE realizara, em 1968, seu congresso clandestino em Ibiúna. Por quê? Só agora, após tanto tempo? Um simples esclarecimento policial? O local havia sido conseguido por Frei Tito, amigo do proprietário.

Sobre o beliche, Tito consumia o tempo numa leitura desatenta, as pernas dobradas como asas de borboleta, os olhos baixos escondidos sob as lentes brancas dos óculos.

Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes — Oban (Polícia do Exército) — no dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”.  Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-se seus revólveres.

Tito partiu sob os nossos protestos: meia centena de presos tinha o resto espremido no alambrado estendido entre as grades, o peito ferido pela dor e ver, imponentes, um companheiro regressar à Oban, o grito uníssono de “assassinos, assassinos!”, entrecortado por expressões confiantes: “coragem, Tito”, “firme companheiro:. A perua manobrou no pátio, ocultando o rosto redondo de Frei Tito, sua cabeça chata de cearense, o corpo baixo e robusto. Indignados, queríamos saber com que autoridade os homens do Exército retiravam do presídio um preso sob custódia de Justiça Militar.

–  Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª Auditoria de Guerra da 2ª Região Militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz-auditor Dr. Nelson Guimarães. Soube posteriormente que esse juiz autorizara minha ida para a Oban sob “garantias de integridade física”.

Denunciado incontáveis vezes nos tribunais militares brasileiros, o crime de torturar jamais foi apurado ou punido. À luz da Justiça sobrepõe-se, no juiz, a força do interesse. Sua estabilidade depende da confiança dos militares: qualquer suspeita significa o fim de sua carreira. Por isso, o espanto inicial provocado pelos relatos de atrocidades, prevalece no magistrado a adequação de sua sensibilidade e consciência à tortura como método de interrogatório, ao assassinato como recurso de profilaxia política, à crueldade do poder como exigência de segurança  e firmeza de autoridade. Para os torturadores, porém, o juiz não passa de um pobre coitado obrigado a dar cobertura legal aos crimes cometidos pelo Estado.

–  Ao chegar à Oban, fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiram para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram-me  para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mão e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-se “telefones”[tapas nos ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 mts, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.

Para certo militares, todo réu é culpado, até prova em contrário —princípio emanada da Doutrina de Segurança Nacional e infundido na cabeça de todos que, durante aos, comandaram a repressão no Brasil. Parte-se da idéia de que ninguém confessa os seus “crimes”, a menos que seja forçado a falar. E para isso só há um recurso: a tortura. A dor física, o pânico psíquico e o medo desencadeiam, no prisioneiro, o instinto de sobrevivência, sob ameaça de levá-lo a dizer ou assinar o que querem seus carrascos. Troca-se a dignidade pela preservação da vida. Nesse  momento, a escolha é crucial, entre ceder à ânsia de sobreviver ou aceitar a dor e a morte por fidelidade aos princípios assumidos.

Em liberdade, quando ainda a nova geração de combatentes não conhecia a fúria repressiva, alimentava-se o mito do herói indomável, capaz de abraçar a morte sem um gemido, como quem encontra o prêmio de seus sacrifícios pelo advento da nova sociedade. No cárcere, os instrumentos de suplício reduziram essas pretensões aos limites da fragilidade humana, embora não tenham faltado testemunhos exemplares, como o de Frei Tito, o de Virgílio Gomes da Silva, o de Apolônio de Carvalho, o de Manuel da Conceição e de tantos outros. A maioria, porém, sucumbiu às atrocidades sofridas. Sabia-se a diferença entre a resistência quebrada e a delação assumida, voluntária. Havia compreensão e perdão para os que falavam sob tortura; discriminava-se punitivamente os que colaboravam com a polícia em pleno domínio de suas faculdades. A escola carcerária ensinava que a fidelidade não se reveste apenas de maturidade ideológica adquirida na prática social, mas sobretudo de amor à causa e às pessoas pelas quais e com as quais se luta. O coração é a raiz da vontade. O bom comportamento tido por Mário Alves, Vladimir Herzog, Marcos Arruda, Carlos Eduardo Pires Fleury e outros resultou de um longo processo de auto-educação, de disciplina, de humildade, que Não se deixou iludir por esse voluntarismo esquerdizante revestido de auto-suficiência em certos militantes que, de tão centrados em si mesmo, quando presos são os primeiros a entregar os outros.

Na quarta-feira, fui acordado às oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me cipo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que, no dia seguinte, enfrentaria a “equipe da pesada”.

Na Oban, os militares procuravam “quebrar” as resistências do preso alternando torturas, perguntas, ameaças. O medo de sofrer novamente as mesmas dores era, por vezes, mais pavoroso que as próprias dores. Naquele inferno, não faltavam os gestos de solidariedade: um copo d’água e um cobertor significam companheirismo, presença amiga, solidariedade. Saber que alguém nos apóia é vencer a solidão que nos torna vulneráveis. Por isso, a percepção, na fé, na presença de Deus em suas vidas tanto encorajava os primeiros mártires cristãos.

–   Na quinta-feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas: “Vai ter que falar senão só sai morto daqui!”, gritou. Logo vi que isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na cadeira-dragão, com chapas metálicas e fios, descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, com se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas que cada vez mais se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a descarga elétrica para 220 volts. a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isso durou até as dez, quando chegou o capitão Albernaz.

Venceste, amigo, os limites da vida, rasgando o véu do tempo, da lógica e do espaço, mergulhando no círculo hermético do mistério, espelhos reflexos do Nada e do Tudo. Cavalgaste a própria dor pelas estradas sinuosas da fragilidade, barco sobre as ondas ancorado no porto seguro do compromisso. O corpo lanhado, espancado, eletrificado, Não profanou a tua intimidade, a tua verdade, acesa, Não perdeu o brilho, estrela solit;aria acima da manada de nuvens rugindo tempestades e estalando raios no atropelo de pesadas patas. Servo contemporâneo de Javé, tua integridade deixou-se fascinar pelo êxtase que decifra o jogo da morte. Um, apenas um de teus gritos resistentes, bastaria para quebras os cristais de nossos encantos mesquinhos, a profissão embrulhada por interesses no tráfico de compra e venda do mercado de trabalho, as idéias adornadas pelos cabeleireiros da moda, os hábitos sob a coleira da vaidade, espumas perfumadas que se diluem à clarividência da água lavando nossos corpos mortais, cápsulas rudimentares do espírito que não se rende às nossas conveniências, nem se dobra aos nosso vícios; antes, é como os pássaros que só pousados à mão dos deuses se sentem livres. Provaste aos verdugos que ainda não se inventaram armas ou se erigiu poder suficientemente fortes para derrotar a consciência humana — arma muito perigosa, confidenciou-me Dostoievski.

–  “Nosso assunto agora é especial”, disse o capitão Albernaz ligando os fios em meus membros. “Quando venho para a Oban, deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede… Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram torturados por ele). Datei a você o mesmo tratamento que deu a eles: choques o dia todo. Todo não que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber”. Estavam três militares na sala. Um deles gritou: “quero nomes e aparelhos”. Quando respondi: “não sei”, recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava Frei Ratton. Como não soubesse, leve choques durante quarenta minutos. Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte “metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “quais os padres que têm amantes?”, porque a Igreja não expulsou vocês?”, “quem são os outros padres terroristas?” Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pelo DOPS tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à Oban prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que “a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo”. Diante de minhas negativas, aplicaram-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. Revestidos de paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziram um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritavam difamações contra a Igreja, berravam que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela, fiquei estirado no chão.

A tua agonia, irmão, dobra os joelhos da Igreja em atitude penitencial. Ela confessa ao teu testemunho as atribulações de quem, fecundada pelo Espírito, destinada às núpcias com o Rei, entrega-se excitada ao poder repressor, dança ao tilintar de moedas falsas, escuta arrepiada, prazerosa, as bajuladoras promessas de autoridades públicas. Nos becos escuros da história, a prostituta oferece-se ao primeiro que lhe prometa brincos de ouro, colares de pedra e anéis cravejados. Jóia preciosa, resguarda o coração, cofre lacrado do amor que só se abre ao seu Senhor, por quem ela não macula na sarjeta os sentimentos e as emoções. Regressa à casa, despe-se dos adornos, lava-0se no sangue de Bartolomeu de las Casas, de Antonio Valdivieso, de Morellos, de Camilo Torres, de Henrique Pereira Neto, de João Bosco Penido Burnier, de Rudolf Lukambein, de Oscar Romero e em teu sangue, Tito. Flor do campo, criança solta livre na manhã vadia, atira-se aos braços de seu Amor, e já são abraços, já são laços. São dois em um só.

–  Às dezoito horas serviram o jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disseram que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e deveria estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” se reiniciou para que eu “confessasse” os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estômago, palmatória, ponta de cigarro acesa  em meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo “corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram deixar-me dependurado toda a noite no pau-de-arara. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço da valentia”.

Na sucursal do inferno, demônios afoitos competiam pelo poder de partir a resistência de suas vítimas. Morcegos vorazes borboleteavam céleres de brasões em brasões, sequiosos de sangue. Erguer a alma do réu na ponta do espadim era o supremo gozo, vitória macabra de uma equipe que recusava passar o preso a outra sem o trunfo de vê-lo falar. A morte era o salário do silêncio. O ritual, porém, dera aos duendes o domínio sobre o espírito humano, navios fantasmas construídos no interior de garrafas atiradas às vagas da noite. O capitão Albernaz sabia o que estava dizendo. Filho de brutos, sua profecia, estigma maligno, haveria de se confirmar no futuro atordoado de Frei Tito.

– Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria agüentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

Oblativa, emergiu em ti, a sombra da morte. Recolhias em teu dom o risco que sobre nós pairava. Resgatava-os das florestas do medo pela tua coragem de abrir as portas dos jardins do Éden, anjo sentinela do cálice que te foi dado beber no Horto das Oliveiras, sorvendo-o sofregamente, até a última gota. Clamaste ao Pau para afastá-lo de nós, entregando-te a copa na qual nos deste teu corpo e teu sangue.

–  Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia. Comecei amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas, no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão  segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.

O preso ao lado era um ex-cabo do Exército que não apoiara seus comandantes no assalto ao poder constituído, em 1964. Cassado e caçado, abrigou-se na clandestinidade, lona puída de um velho e precário circo com tão poucos espectadores que os atores acabavam por representar para si próprios. As massas condensavam-se sonoras, pujantes, num conceito teórico que nos escapava na concretude oca da história. O circo era feito de palhaços, seus números arriscados dispensavam redes, a arte era toda audácia; só não se previu a rebelião das feras a abater caçadores e domadores. O ex-cabo Mariani foi preso nos primeiros dias de 1970, próximo a Teófilo Otoni. Transportado para o DOPS de Belo Horizonte, ingeriu velha cápsula de cianureto que trazia consigo. O veneno queimou-lhe as vísceras, correu-lhe os intestinos e, da morte, só provou o sabor amargo. Trazido para São Paulo e entregue ao Exército, recebeu “tratamento exemplar”.

Outro companheiro soube o que é isso e estendeu-te a mão, a paz, o pão: Fernando Gabeira. Ave insolente, um tiro atravessou-lhe, o vôo para a liberdade, devolvendo-a à gaiola de ferros. Não lhe cortaram as asas impetuosas, o amor à vida e o fascínio pela utopia. Contudo ao retornar do exílio diria adeus às armasse, por cima de abnegados sacrifícios, faria entender que o circo não passou de uma grande aventura, como se o sonho fosse fruto e não matriz da realidade.

Estranho enlace entre a fé e as feras: o Novo Testamento que tu leste fora presente do capitão Roberto, crente obcecado em difundir a Palavra, sem no entanto reconhecer-te cúmplice da profanação sacrílega que se pratica ali dentro sobre os verdadeiros templos de Deus.

–  Na sexta-feira, fui acordado por um policial. Havia a meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “O senhor tem hoje e amanhã para se decidir a falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostas e matá-lo aos pouquinhos.” Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barbam, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a gilete para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde, recobrei os sentidos nu leito do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia, transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, este padre não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos”. No meu quarto, a Oban deixou seis soldados de guarda.

Enquanto padecias, buscávamos desesperados meios de mobilizar as pessoas. Adivinhamos o teu calvário atingido em penosas estações. Nosso apelo chegou ao advogado, Dr, Mário Simas, e aos nossos superiores, Frei Domingos e Frei Edson. Era um tempo em que o relógio marcava cada segundo do jogo da vida e a vitória exigia muita presteza. O Núncio Apostólico, Dom Umberto Mozzoni, voou de Brasília para a capital paulista tão logo foi avisado. Ele e Dom Paulo Evaristo Arns jamais se esconderam dos momentos difíceis; bons pastores, não abandonaram as ovelhas atacadas pelos lobos. Faziam de sua autoridade serviço. Nas vestes vermelhas, traziam as insígnias do martírio; nas mãos o sangue de feridas alheias. Acompanhado por Frei Domingos, o Núncio foi à Operação Bandeirantes, na rua Tutóia, à tua procura.. Queria ver-te. Todavia, a prepotência cospe na verdade. Na porta, o policial de plantão informou que teu nome não constava na lista de presos. O convívio com a perversidade habituara-os à mentirosa indiferença perante à aflição de tantas e tantas famílias que, ainda hoje, buscam seus mortos e desaparecidos.

–  No sábado, teve início a tortura psicológica. “A situação afora vai piorar para você que é um padre suicida e terrorista”, diziam eles. “A Igreja vai expulsá-lo.” Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas  histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.

O quarto que ocupaste no Hospital Militar do Cambuci era, de fato, uma cela, a mesma na qual Gabeira ficara após ser ferido a bala por tentar fugir da Oban. Se o carrossel da loucura não te apanhou, foi graças à carinhosa atenção das irmãs que trabalhavam no hospital, santas marias da consolação.

–  Na segunda noite, recebi a visita do juiz-auditor, acompanhado de um padre do convento e de um bispo-auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do Presídio Tiradentes. O médico do hospital examinou-me à frente deles, mostrando os hematomas e as cicatrizes, os pontos recebidos no Hospital das Clínicas, as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltasse à Oban, o que prometeu fazer.

Tão logo soube o que ocorrera contigo, o Provincial dos dominicanos, Frei Domingos, entrou em contato com Dom Agnelo Rossi, Arcebispo de São Paulo. Nesses casos, os bispos se dividem em duas atitudes: os que vão direto socorrer os oprimidos e os que acreditam que só os poderosos podem salvar os oprimidos… O Cardeal telefonou ao Governador Abreu Sodré e encarregou seu Bispo-Auxiliar, Dom Lucas Moreira Neves, dominicano, de falar com o juiz-auditor. O Bispo e o juiz eram velhos conhecidos, desde a antiga JUC carioca, nos anos 50. Por insistência deste pequeno grande homem, Frei Domingos, o Dr. Nelson Guimarães decidiu ir ao Hospital Militar, acompanhado também por Dom Lucas. Antes, porém, impôs uma condição: Não se revelar nada do que veriam e ouviriam.

No hospital do Cambuci, o major-oficial do dia e o capitão-médico de plantão acompanharam os visitantes ao teu leito. Teus olhos exultaram ao ver o rosto de pessoas que poderiam salvar-te. Sem receio, disseste que tentaras matar-te, cortando a artéria do braço esquerdo, por não mais suportares o tratamento recebido na Oban. Denunciaste as ameaças que pesavam sobre nós. Solicitado pelo juiz, o capitão-médico examinou-te, constatando escoriações e hematomas em várias partes do corpo e suspeita de fratura nas mãos. Imploraste ao magistrado que te desse garantias de vida e não permitisse teu retorno à sucursal do inferno. Querias viver, Tito, livrar-te dos fantasmas das trevas que povoavam os corredores lúgubres do aparelho repressivo.

Dia seguinte, Frei Domingos, munido de uma autorização do juiz, tentou nova visita. Foi barrado, sob a alegação de que necessitava de uma autorização especial das autoridades da 2ª Região Militar.

Por ocasião do teu julgamento, irmão, a Província dominicana do Brasil pediu a Dom Lucas um depoimento sobre o estado em que te encontravas ao visitar-te. Não uma denúncia, um protesto, um salmo de indignação. Um simples relato, fiel à verdade, de tuas dores. Dom Lucas, para nosso espanto, se recusaria, alegando não querer prejudicar suas atividades pastorais. E as responsabilidades jamais foram apuradas.

– De fato, fui bem-tratado pelo militares do Hospital Militar, exceto os da Oban que montavam guarda em meu quarto. As irmãs Vicentinas deram-me toda a assistência necessária. Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, 27 de fevereiro de 1970, fui levado de manhã para a Oban. Fiquei numa cela até o fim da tarde, sem comer. Sentia-me tonto e fraco, havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar. À noite, entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.

No sábado, Dr. Mário Simas solicitou ao juiz apurar a veracidade dos fatos, localizar Frei Tito, colher seu depoimento e adotar as medidas cabíveis e legais diante do que fosse constatado. Dr. Nelson Guimarães concedeu ao advogado autorização para visitar o religioso no Hospital Militar. Recebido à porta pelo coronel-comandante do hospital, nosso defensor foi barrado:

–  O senhor não pode entrar — disse-lhe o oficial.

–  Mas trago autorização do juiz-auditor.

–  Para mim, isso nada significa. Só admito sua entrada nessas dependências com autorização especial fornecida pela 2ª Região Militar.

Dr. Simas ponderou:

–  Trata-se de um preso da Justiça Militar. Não se pode mais cercear seu direito de comunicação.

–  Sem autorização escrito do meu comando, o senhor não entra aqui — repetiu o coronel.

No quartel da 2ª Região Militar, o advogado foi recebido pelo coronel Albuquerque:

–  Isso não é comigo — asseverou o militar. — É da alçada do II Exército. Procure lá o coronel Erard ou o tenente-coronel Souza Aguiar.

No comando do II Exército, no Ibirapuera, Dr. Mário Simas apresentou-se ao oficial de dia:

–  Sou advogado na Justiça Militar e gostaria de falar com o tenente-coronel Souza Aguiar.

–  Impossível, ele está de férias.

–  E o coronel Erard?

O atendente deu um telefonema e, em seguida, informou:

–  O coronel Erard não se encontra na casa, passe aqui amanhã.

No dia seguinte, Dr. Simas foi recebido pelo coronel Erard. Após expor os motivos de sua visita, ouviu do oficial:

–  Isso é com o coronel Albuquerque, da 2ª Região Militar. Vou mandar chamá-lo.

Ao comparecer o coronel Albuquerque, seu companheiro de farda fez o advogado repetir o pedido:

–  Sem dúvida — retrucou o militar —, desde que obedecidas as condições e os horários do hospital. O senhor aguarda que vou tentar comunicar-me com o comandante do hospital.

Perdido na burocracia implacável, submetido à humilhação meticulosa e fria, após longa espera o advogado retirou-se do quartel.

Afeto e admiração cercaram o retorno de Frei Tito à cela 7. Nossa alegria foi contida pelo lastimável estado em que ele se encontrava: o rosto inchado, o corpo coberto de hematomas e de queimaduras de cigarro, o braço esquerdo enfaixado (ver exame clínico no Anexo 5). Estava fraco, pálido. Carregado, subiu as escadas e, na cela, os médicos Davi e Madeira, presos políticos, improvisaram a aplicação de soro glicosado. Apesar de tudo, estávamos orgulhosos de sua coragem. Tito parecia todo feito de luz: seus olhos miúdos irradiavam alegria, o moral revelava-se alto e seu silêncio traduzia paz. Como todos os prisioneiros que não cedem às torturas, ele estava possuído por uma força que exprimia modéstia e dignidade.

Seu relato de torturas, redigido na prisão, foi divulgado pela primeira vez no jornal Publik, da Alemanha, e, posteriormente, mereceu prêmio especial de reportagem da revista norte-americana Look, em 1970. Correu mundo em diversos idiomas. Em seu parágrafo final, alerta Frei Tito:
É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schreiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde. A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra esta situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este, o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo. “Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, alem das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos”(2 Co. 1, 8 e 9). Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.

Em julho de 1970, Tito recebeu no Presídio Tiradentes esta carta do arcebispo de Fortaleza, datada de 28 de junho:

Caríssimo Frei Tito, 

Enquanto nos movemos no escuro e nem sempre possuímos toda serenidade diante dos acontecimentos da Salvação, somos conduzidos por Deus dentro dos planos infalíveis que nos levam a contribuir para a vitória dela. Como na hora máxima da operação salvífica, em cada instante da sua História haverá sempre uma cruz na qual alguém, mais próximo do Salvador, se purifica no amor aos homens.

Este é o grande recurso interior querido pela fé. Ela é a “nossa vitória, conforme a revelação ensina.

Acredito que das provas de fogo você sairá maior e poderá pregar a todos nós, seus irmãos, a verdadeira doutrina do amor crucificado, em cuja eficácia o mundo não crê.

É este amor e somente ele que nos converterá em “espetáculo oferecido aos homens e aos anjos”. A maioria dos nossos irmãos não se converterá sem contemplações espetaculares. Seja digno da vocação de mártir da caridade. Para mim nela se resume a significação de muitas vidas humanas e cristãs.

Do seu servo e pastor amigo,

Dom José Delgado.

Caçula entre onze irmãos, Tito de Alencar Lima nasceu em Fortaleza a 14 de setembro de 1945. Aluno dos jesuítas, ingressou na JEC, afirmando-se logo como um dos seus mais ativos militantes. Nomeado dirigente regional em 1963, transferiu-se para o recife. No velho casarão da Rua do Leite, onde moravam os dirigentes dos movimentos de Ação Católica, encontrei-o em minhas viagens pelo Nordeste. Ele era membro da equipe que coordenava a JEC do Maranhão à Bahia.

A fé cristão o inquietava. Deus irrompera em sua vida como apelo, desafio e paixão. Perseguia-o a idéia de consagrar-se integralmente à causa do Evangelho. Espírito místico, afeito ao silêncio e à oração, considerou a hipótese de fazer-se Irmãozinho de Foucauld, decidindo-se porém pelos dominicanos, mais vinculados aos militantes da JEC. Nos primeiros dias de 1966, entrou no noviciado, no Convento da Serra, em Belo Horizonte. Após a profissão simples, quando assumiu por três anos os votos de obediência, de pobreza e de castidade, a 10 de fevereiro de 1967, Frei Tito transferiu-se para a capital paulista. Residia no convento das Perdizes e cursava Filosofia na USP.

Como em todo o país, também em São Paulo o movimento estudantil era o setor da sociedade civil que melhor expressava o descontentamento frente ao regime militar. Na faculdade, Tito participava de reuniões e das manifestações, colocando-se a serviço de seus companheiros, o que lhe permitiu obter o local em Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968. Preso com os congressistas, passou pela triagem do DOPS sem que percebessem sua condição religiosa.

Frei Tito foi novamente preso na madrugada de 3 para 4 de novembro de 1969, quando a equipe do delegado Fleury invadiu o convento da Rua Caiubi. Vasculharam seu quarto e, no DOPS, o próprio Fleury encarregou-se de torturá-lo com choques, palmatória e pancadas na cabeça. Três meses depois ele retornou ao suplício, na Oban.

Em fevereiro de 1970, Tito deveria renovar seus votos religiosos. O Provincial solicitou à Auditoria Militar licença para celebrar missa no presídio. O juiz chamou-o para uma conversa e explicou que não daria a autorização porque a missa poderia ser entendida como afronta ao Governo.

Frei Domingos é o tipo de homem difícil de envergar, impossível de quebrar. No primeiro dia de visita aos presos, em março de 1970, Tito desceu ao pátio carregado pelos companheiros. Ali mesmo, como nas catacumbas, o Provincial recebeu os seus votos, indiferente às preocupações do juiz.

Em outubro, os dominicanos presos fomos acusados de liderar manifestação carcerária contra o Esquadrão da Morte, que tirava suas vítimas dentre os presos comuns recolhidos na parte térrea do Presídio Tiradentes. Punidos, distribuíram-nos por solitárias de quartéis. Como todos nós, Tito passou um mês sozinho numa cela vazia, sob ameaça constante de soldados e de oficiais. Ao sair, foi convocado para prestar depoimento no tribunal militar. O juiz Nelson Guimarães repreendeu-o por divulgar no exterior a narrativa dos suplícios que sofrera em fevereiro. Ficamos felizes pela advertência, pois através dela soubemos que o relato fora publicado nas revista L’Europeo e Look, tendo merecido o prêmio de 1970 do New York Overseas Press Club, importante associação de jornalistas norte-americanos e estrangeiros nos Estados Unidos.

–  Além do mais, tudo o que você escreveu é falso! — disse o magistrado.

Dr. Nelson Guimarães vira Frei Tito dilacerado no Hospital Militar e considerara aquilo “uma estupidez”. Nos regimes ditatoriais, porém, a palavra da autoridade é a verdade. Tito não se fez de rogado: descreveu novamente todos os detalhes das torturas sofridas. Co o rosto vermelho de raiva e os festos trêmulos, o juiz proibiu o escrevente de incluir a denúncia no depoimento do réu. O advogado de defesa interferiu e insistiu para que as palavras do religioso fossem transcritas no processo.

–   Vocês compreendem, a tortura é uma coisa de tal modo horrível que é  melhor não falar dela — esquivou-se o magistrado.

Em dezembro de 1970, um comando da VPR seqüestrou, no Rio, o Embaixador suíço, Giovanni Enrico Bücher. Na lista dos setenta prisioneiros políticos que deveriam ser soltos em troca da vida do diplomata, figurava o nome de Frei Tito. Celebramos eufóricos a possibilidade de vê-lo em liberdade, “graças ao grande advogado doutor embaixador, o único que promovia solturas coletivas, independente do peso das condenações”, dizia Daniel José de Carvalho. Tito, porém, reagiu de modo diferente. Não queria deixar o Brasil. Lamentava constar da lista, sobretudo por não poder recusar a oferta, sob pena de fazer o jogo da repressão, interessada em desmoralizar os seqüestradores. Nos vários seqüestros de diplomatas — americano, japonês, alemão e suíço —, alguns presos preferiram permanecer no cárcere, tendo seus nomes e fotos estampados na imprensa como se fosse aliados do Governo. Tito preferia ser banido — punição automática a todos que saíam mediante seqüestros — do que ver-se utilizado pelo regime militar. As negociações foram demoradas, o Governo insistia, pela primeira vez, em não liberar certos prisioneiros considerados mais perigosos pela repressão. Da cela 17 do pavilhão 2, acompanhamos tensos o noticiário através do rádio que, clandestinamente, conseguimos introduzir no Presídio Tiradentes. Era um período em que os rádios estavam proibidos, só entravam jornais. No entanto, tínhamos um de cinco faixas, escondido no colchão. Temerosa der ver a sua ação frustrada, a VPR refazia a lista sob pressão do governo. O nome de Frei Tito, todavia, permanecia em pauta. Seus planos para o exílio consistiam em buscar uma forma de vida religiosa mais radical e estudar a fundo os clássicos políticos. Desde a tortura, ele nos parecia mais introvertido, cercado de silêncio, mergulhado em oração. Em janeiro de 1971, o Governo aceita a lista definitiva. Tito inicia as despedidas e redige esta pequena carta ao advogado e preso político Wanderley Caixe:

Companheiro Wanderley

Para mim foi motivo de grande satisfação ter convivido com você durante 12 meses no presídio Tiradentes. Sob o signo deste herói que, infelizmente, virou nome de cárcere, reuniremos os grandes ideais que o futuro do povo brasileiro tanto anseia: a construção do socialismo. E só os verdadeiros homens é que foram chamados para este grande ideal. Contra isso, nada vence; nem tortura e nem perseguições.

Companheiro, aqui no Exterior estaremos sempre reunidos pelos mesmo princípios. Até a vitória final!

S.Paulo, 10/1/71

Quatro dias depois dessa carta, Tito foi retirado da cela para viajar. Na carceragem do Tiradentes encontravam-se equipes do DOPS e da Oban, criticando abertamente o Governo por ceder aos seqüestradores e ameaçando os escolhidos de fuzilamento. Ordenaram a Tito que tirasse a roupa. Nu, ele foi fotografado de todos os ângulos. Ao preencher a ficha, indagaram a que organização política ele pertencia:

–  A Igreja — respondeu ele.

A última vez que o vi foi naquele momento em que, do pátio, ele abanou a Mão e ergueu o polegar, em sinal de otimismo, antes de entrar na viatura que o conduziu ao aeroporto, em companhia de outros companheiros do Tiradentes incluídos na lista. Com gritos de alegria e cantos saudamos, uníssono, a libertação inesperada. Pelas galerias do presídio ressoava impetuoso o Hino da Independência:

Ou ficar a Pátria livre

Ou morrer pelo Brasil.

No mesmo dia o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, assinou o decreto banindo do país os companheiros libertados. Horas depois, ao desembarcar no Chile de Allende, Cristóvão Ribeiro comentou eufórico ao ver a multidão alegre no aeroporto para recebê-los:

– Tito, eis finalmente a liberdade!

– Não, não é esta a liberdade — ponderou o dominicano, deixando seu companheiro intrigado.

 

Santiago do Chile era, no verão de 1971, o lugar apropriado para os exilados dispostos a participar do sonho de construir o socialismo pela via pacífica e legal, mas não era o lugar que Frei Tito queria. A proximidade com o Brasil permitia contatos mais fáceis, notícias mais freqüentes, mormente para os que se empenhavam em restaurar suas organizações durante atingidas pela repressão, mas esse também não era o interesse de Tito. Dentro de poucas semanas, voou para Roma e bateu, em vão, às portas do Colégio Pio Brasileiro, o seminário destinado a formar a elite de nosso clero. A fama de “terrorista” do dominicano assustava os padres do Pio Brasileiro. Tito parte, então, para Paris.

Na capital francesa encontravam-se exilados nossos colegas dominicanos: Osvaldo, Magno e Ratton. Até junho de 1973, Frei Tito desfruta da companhia deles no convento de Saint Jacques, em cuja entrada, à Rue des Tanneries, há a placa que recorda sua invasão pelos nazistas em 1943 e o martírio de dois dominicanos levados pela Gestapo. Prossegue seus estudos de Teologia. Durante os primeiros seis meses, sente-se bem, relacionando-se sem dificuldades com as pessoas. Aos poucos, entretanto, ressurgem os sinais das torturas que sofrera, estigmas psíquicos de sua subjetividade conflitada, a introjeção depressiva alternando-se ao momento de euforia. Sua personalidade avariada exigia tratamento psiquiátrico. Apesar da dedicação dos médicos, os fantasmas não se apagam: a mente atordoada de Frei Tito projeta sobre Paris a imagem onipresente da repressão brasileira, o rosto diabólico do delegado Fleury aparece-lhe em cada café dos Champs Elysées, os olhos injetados de ódio dos militares da Oban tentam, agora, esconder-se entre as folhas do Jardim des Tuilleries, dentro de cada vagão do metrô há um homem do DOPS, todo cuidado é pouco e a desconfiança obsessiva a Tito marcar pontos para poder encontrar seus amigos brasileiros condenados ao exílio. Não seria o Arco do Triunfo um monumento ao pau-de-arara? A terapia parisiense não conseguia colar os pedaços de sua interioridade quebrada, como prenunciara o capitão Albernaz. A Torre Eiffel erguia-se como um gigantesco eletrodo. Acuado pelas sombras que se acumulavam em seu cérebro, Tito interrompe, sem explicações, o tratamento. Sente-se angustiado, oprimido, perseguido. Só a voz telúrica de Milton Nascimento, a poesia irreverente de Chico Buarque e as longas horas abraçadas ao violão que ele aprendera a dedilhar aliviam suas saudades do Brasil.

–  Veja, estou agonizando. Há agonias que servem para alguma coisa, como a de Cristo. A minha não servirá para nada.

O padre Charles Antoine era muito amigo de Tito. Ouviu-o angustiado. Antigo capelão do Centro Residencial da Cidade Universitária de São Paulo, viu-se obrigado a deixar o Brasil quando a polícia ocupou os alojamentos estudantis, em 1969. Credenciado pela imprensa francesa, acompanharia todo o nosso processo.

Em junho de 1973, Tito acerta com seus superiores transferir-se para Lyon, em busca de um ambiente mais tranqüilo para viver e estudar. Construído por Le Corbusier, o convento de Eveux abra suas portas a ele; novos amigos o cercam: os padres dominicanos Belaud, prior da comunidade, Roland Ducret, Xavier Plassat, e o Dr. Jean-Claude Rolland, psiquiatra do hospital Edouard Herriot, de Lyon.

Em meados de setembro, um acontecimento político muito distante repercute na cabeça, na alma, nos sentimentos e no inconsciente de Frei Tito, fragmentando suas frágeis esperanças, mutilando suas idéias, apagando seus horizonte: a queda de Salvador Allende, no Chile. Enquanto o general Pinochet entra para a galeria dos ditadores latino-americanos, Tito abandona suas atividades normais e torna-se ausente, impenetrável, sufocado por seus fantasmas interiores. O silêncio de sua quietude mística, povoada pela presença inefável do Pai, rompe-se por efeito de um pavoroso delírio: ele ouve continuamente a voz rouca e autoritária do delegado Fleury, hóspede intruso do cérebro, do medo e dos porões da consciência de Frei Tito. Quer que ele confesse e diga as coisas que sabe e invente o que puder e dê vivas aos generais brasileiros e delate todos os seus amigos e acuse os dominicanos, a Igreja, o Papa, e assine depoimentos falsos. Tito resiste, não fala, suporta estoicamente todos os sofrimentos experimentados na Oban, agora introjetados em seu espírito. Fleury ameaça torturar cada um dos membros de sua família: o velho pai, a mãe, as irmãs, os irmãos. Tito prefere morrer do que ceder. Ainda que sua família padeça, há nele uma força descomunal que o impede de trair seus ideais. O chefe do Esquadrão da Morte cumpre a promessa: em seu estreito quarto no convento de L’Arbresle — que visitei no outono de 1980 —, Frei Tito estremece aos gritos do pai espancado no DOPS, geme aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorce-se com calafrios ao ver as irmãs despidas pelos homens do Esquadrão. Todavia, a dor, o Pânico, a subjetividade como palco de intenso conflito entre o Absoluto  e o absurdo não quebram a sua fidelidade. Ele tudo suporta como quem mastiga o fruto amargo coberto de espinhos.

Vinte frades integravam a comunidade de Lyon. Percebem, certo dia, a ausência de Tito no almoço. Padre Belaud vai ao seu quarto:

–  Você não vem comer conosco?

–  Você notou que eu não estava? — retrucou com satisfação o religioso brasileiro.

–  Claro!

– Então você se interessa por mim?

–  Você duvida disso? — indagou o prior.

Uma sombra cobriu a luz que se abrira no rosto de Tito:

–  Sim duvido. Não estou seguro disso.

Malgrado todos os esforços, os médicos reconheceram que o tratamento não apresenta melhoras. Uma noite, após o jantar, os frades cainhavam pelo jardim do convento, quando o céu se abriu à chuva que os obrigou todos a retornarem ao claustro. Só Tito prossegue a caminhada, indiferente à água que lhe encharca o hábito. Xavier Plassat, um de seus melhores amigos, convida-o a entrar:

–  Não posso — responde Tito.

–  Por quê?

–  Ele me proíbe…

–  ?! … Quem te proíbe, Tito?

–  O Fleury, ele não quer que eu entre.

–  Mas ele Não está aqui, Tito; está no Brasil.

–  Mentira. Ele está lá dentro do convento. Se eu entrar ele me espanca.

Tito ficou um dia e meio sentado sob uma árvore. Xavier tentava compreendê-lo e, de alguma forma, evitar que ele sofresse sozinho. Sentou-se ao lado dele durante seis horas, embora nada entendesse do que ele falava em português. Apenas, percebia a angústia profunda, dilacerante, opressiva. Finalmente, Tito falou-lhe em francês, entre choros e gemidos:

–  Tenho que obedecer a ordem dele.

–  Dele quem, meu irmão?

–  Do Fleury.

–  Mas ele não está aqui, está no Brasil.

–  Não, ele está aqui perto — insistiu o dominicano brasileiro.

–  Onde, Tito?

–  Em Saint Paul la Police.

Saint Paul la Palue é uma pequena cidade a cinco quilômetros de  Lyon que, na mente assobrada de Tito, ganhara outra ressonância.

Fleury viria buscar Tito no dia seguinte se ele não fosse se entregar. Se resistisse, toda a sua família seria torturada. Impassível durante horas, sua firmeza eclodiu em gritos sob as árvores de L’Arbresle:

–  Por favor, ele nunca fez nada, é inocente!

–  Pelo amor de Deus, não faça isso!

……………………………………………………

Apesar dos esforços de Xavier, Tito recusava-se a entrar no convento. Confidenciou-lhe a ordem que recebera de Fleury:

–  “Você é indigno de entrar no convento dos dominicanos, de se sentar com eles à mesa, de comer com eles. Eu te proíbo de entrar!”

Procurando seguir a lógica da loucura, Xavier passou a dar ordens a Tito:

–  Está bem, você pode ficar aqui, mas deve se abrigar.

Encostou a caminhonete junto à árvore e conseguiu que ele entrasse e tomasse a sopa com os comprimidos para dormir. Enquanto Tito dormia, Xavier entrou no convento. Quatro horas depois, voltou para encontrá-lo de novo sob a árvore, semi-adormecido sob efeito dos remédios, mas fiel às ordens do policial brasileiro.

Decidem caminhar até Saint Paul la Palue para se certificarem da presença do delegado. Pelas ruas, indagam dos moradores se ali residia alguém com o nome de Fleury, informaram-se nos bares, consultam a lista dos hotéis. Não, em Saint Paul la Palue não havia Fleury algum. Sérgio Paranhos Fleury encontrava-se hospedado na alma de Frei Tito de Alencar Lima.

Na mesma noite, Tito é internado no hospital Edouard Herriot, no pavilhão N.

A primeira manhã ele passa de pé na enfermaria, o rosto colado à parede, os braços abertos em cruz, sem se mover. A enfermeira pergunta por que se encontra assim e ele responde que não pode deixar a parede porque espera ser fuzilado. Nos dias seguintes, não se alimenta, mostra-se tomado por esmagador sentimento de culpa: sobre sua alma recai o peso da responsabilidade pelo fracasso da luta armada no Brasil, pelo golpe militar no Chile, pela ascensão da direita na América Latina. Frei Tito busca ansioso uma companheira com quem já se familiarizara e que, despida de sua máscara, seria capaz de aliviá-lo, absorvendo-o na paz definitiva: a morte. O Dr. Roland e sua equipe o acompanham com amizade e redobrada atenção profissional. Graças ao repouso e à psicoterapia, o tratamento quimioterápico é interrompido e o delírio cessa. Permanece, contudo, a angústia. A tristeza encerra-o em completo silêncio.

Após três semanas, Tito retorna ao convento. Não acalenta projetos de futuro, evita contatos, arma-se de defesas, fala muito pouco. Teria preferido continuar no hospital, onde se sentia mais seguro. O médico o revê duas vezes por semana e durante o inverno ele retorna periodicamente ao hospital.

No Natal de 1973, sua irmã, Nildes, deixa Fortaleza para visitá-lo. Tito sempre fora muito apegado à família e as saudades reforçavam seu sofrimento. Todos esperavam que a chegada da irmã o aliviasse da angústia abissal. No entanto, durante as três semanas que ela passou em L’Arbresle, hospedada no convento, Tito parecia ignorá-la. Esforçava-se por disfarçar seu desequilíbrio e aparentar segurança, tentando recompor a imagem que outrora projetara à irmã. Nildes procurou abordá-lo, mas ele recuou:

–  Não fale comigo de dia, venha ao meu quarto à noite.

–  Mas… por quê?

–  Estamos sendo vigiados pelo Fleury.

De madrugada, ela bate à porta do irmão. Entre, iniciam a conversa, mas Tito está tenso, assustado:

–  O que foi, mano?

–  É melhor você voltar a seu quarto.

–  O que houve?

–  Volte logo, o Fleury pode chegar e encontrar-nos aqui.

Aos poucos, Nildes conseguiu que o irmão se aproximasse um pouco mais dela. Decidem ir juntos ao Dr. Roland, com quem conversam abertamente sobre o caso.

Ao despedir-se de Tito, no momento de iniciar viagem de retorno ao Brasil, Nildes pressentiu que era a última vez que via seu irmão vivo.

–  Tito já está morto. O psiquiatra acha que ele se recomporá. Eu tenho minhas dúvidas.

Ao desembarcar em Fortaleza, ela não escondeu da família suas impressão. Recordou que, com dificuldade conversara muitas coisas com o irmão, que nunca falava de si mesmo, bloqueio rompido apenas uma vez, quando ele desabafou:

–  Eu não agüento mais, preciso voltar. Morro de saudades, me sinto só. Quero minhas raízes, quero meu povo, é por ele que eu lutei.

Nildes relembrou seus passeios com Tito pelas cercanias e L’Arbresle:

–  Andávamos pelos bosques quando vi, de relance, o cemitério dos dominicanos. Tive a certeza de sua morte. De súbito, imaginei seu túmulo.

No dia em que abriu seu coração, ele disse ainda à irmã que lhe servira de babá na infância:

–  Sou uma pessoa inutilizada, mas atenho que vencer isso. Meu problema não é mental, é de superação. Preciso encontrar uma força.

Pediu a ela que lesse em voz alta o capítulo da ressurreição de Lázaro, no evangelho de São João. Queria meditar sobre o sentido da outra vida. Após a leitura, ela ponderou:

–  Olha, o sentido para mim é que Lázaro, morto, foi ressuscitado para viver aqui.

 

No decorrer do primeiro semestre de 1974, os dominicanos de L’Arbresle esforçaram-se para que Tito reassuma seu lugar na comunidade, participe das atividades normais, sinta-se integrado. Não obstante, ele deseja ser tratado como o menor de todos e pede que lhe dêem as mais difíceis e ingratas tarefas. No que faz, procura um meio de se autopunir, pois a voz de Fleury ecoa em sua cabeça convencendo-o de que é culpado, merece ser rejeitado, não serve senão para humilhar-se perante os outros. A angustia o consome.

Na primavera, após um dia de exaustivas tarefas, ingere um tubo de Valium. Volta ao hospital. A psicóloga que o acompanha não sabe como fazê-lo comer ou falar. Xavier Plassat visita-o, quando o capelão do hospital entra no quarto.

–  Você quer rezar, Tito? — pergunta o dominicano francês.

–  Quero muito.

O capelão estende-lhe o livro e ele escolhe um salmo de lamentação e de desespero que termina com uma palavra de esperança.

–  E você Tito, o que espera? — indaga Xavier.

–  Sim, eu espero viver, mas só depois da minha morte.

Ao receber alta, ele retorna ao convento como se estivesse curado. Dialoga com as pessoas, interessa-se pelos acontecimentos, entretém prolongados debates teóricos, especialmente com o padre Jolif, a quem tanto estima. Tito está diferente, a vida corre em seu sangue, os fantasmas adormecem em seu  cérebro, ele já não se fecha em longos períodos de mutismo, aceita a presença do médico, ingere normalmente os alimentos. Essa fase, propícia à orientação do Dr. Roland, o impele a conquistar sua autonomia, ocupar-se utilmente, ganhar o seu próprio sustento, como os demais frades.

Padre Belaud, o superior do convento, compreende que Tito queira viver independente, recuperar a confiança em si mesmo, mas não vê razão para que ele queira também desligar-se da Ordem, alegando que se constitui um peso para a comunidade, na qual se sente suportado, mas não amado. No entanto, não é hora de exigir de Tito a dimensão proporcional das coisas. O importante é que ele se assuma e evite regressar ao hospital, dedicando-se a atividades que lhe sirvam de laborterapia.

O fim da primavera revigora os campos do Sul da França; a natureza, luminosa, floresce exuberante. Daniel Beghin convida Frei Tito e Xavier Plassat para trabalharem na colheita de cerejas do pequeno pomar de um militante sindical, próximo a Eveux. Tito empenha-se no ofício, colhe as frutas saboreando-as, expõe o corpo ao sol do verão que se aproxima, a pele suada, o sorriso derramando da alma, as noites alegres em torno da mesa de refeições. Antes de encerrarem o trabalho, Daniel acerto com Tito novo passeio para dali a alguns dias.

Na data combinada, parem para as montanhas, Daniel com sua barraca, Tito com o violão ao ombro. À beira de um lago, o tempo flui à música suave das cordas os instrumento de Tito que cantarola melodias brasileiras, curte a nostalgia impregnada em sua sensibilidade. Tito sorri, renasce nos rios que inundavam sua infância. Junto à água, divertem-se em pescar as moedas que correm do bolso da camisa ao se agacharem para lavar as mãos. Contudo, Daniel percebe que Tito não olha as flores, vira os olhos como se fugisse de uma maldição. Não, Não eram floridos os delírios de Frei Tito. Em francês, o perfume das flores o asfixia como um gás letal. Fleury, fleurir.

Na volta, Tito parece embriagado de liberdade. Agradece a Daniel ofertando-lhe o disco Construção, de Chico Buarque, e um outro de emboladas da Bahia. Oito dias nas montanhas fizeram dele um homem saudável e bronzeado. Retoma as leituras, interessa-se de novo pelos jornais, deleita-se com a música.

Não era fácil encontrar um emprego estável para alguém na situação de Tito. Às vezes a disposição naufraga em prolongada ausência da realidade, como que a beira de nova depressão. Trabalha alguns dias como entregador na adega da cooperativa de St. Bel, mas sem êxito, pois logo é despedido. Não tem sorte também como explorador florestal do Haut Beajolais. Cada fracasso o deixa abatido, desligado do real, encerrado em seu próprio círculo hermético. Tito já não se sente como alguém que é. O que ele é não o afirma, antes o nega em seus direitos mais elementares: banido, exilado, desempregado. Seus laços se cortaram. Está distante, muito distante, de seu Ceará, de seus amigos, de sua pátria e de sua luta. Dentro dele navegam o terror, a voz ameaçadora do chefe do Esquadrão da Morte, o silêncio angustiante, a interrogação permanente, sem resposta. Em julho, o Dr. Roland o examina e marca nova consulta para setembro.

A última estação da via-sacra de Frei Tito situa-se em Villefranche-sur-Saône. Através de uma agência de empregos, ele consegue ser admitido como horticultor. Aluga um pequeno quarto numa pensão para imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas ele paga com seu próprio salário. Instala-se em seu quarto com alguns utensílios de cozinha e poucas provisões, mostra-se feliz em sua independência. Porém, ao fim de uma semana repleta de visitas dos frades de Eveux, o patrão o percebe indolente, ausente, povoado por fantasma e pretende afastá-lo do emprego.

São noites de silêncio

Vozes que clamam num espaço infinito.

Um silêncio do homem e um silêncio de Deus.

O horticultor reclama com Xavier:

–  Assim não dá. Ele fica lá, sentado no chão, olhando o céu. Num momento está rindo, noutro está chorando. Assim não dá.

Despedido, Tito permanece no mesmo quarto e logo consegue trabalho no entreposto de Villefranche. Nessa primeira semana de agosto de 1974, ele recebe a visita de Roland Ducret e, por duas vezes, de Michel Saillard, que está de viagem para o Brasil. A Michel, Tito confidencia:

–  Já não creio em nada, nem Cristo, nem Marx, nem Freud.

As três grandes vertentes da cultura contemporânea atravessam, como línguas de afiadas espadas, o coração atormentado de Frei Tito. Jesus foi sempre a razão fundamental de sua vida e de sua luta; mergulhado no caos interior, ele prova o sabor amargo do cálice e, como o jovem carpinteiro de Nazaré, sente-se abandonado pelo Pai. Marx o introduzira na racionalidade política, na sucessão produtiva do processo histórico, fornecendo-lhe bases teóricas à sua presença social. Agora, porém, Marx nada tinha a dizer à sua subjetividade atribulada, alienada, a existência cruelmente amputada der sua essência. Freud é insuficiente para dissecar sei inconsciente torturado, introjetado de generais brasileiros, de oficiais da Oban, de policiais do DOPS, da onipresença do delegado Fleury. Todos os recursos da ciência freudiana dissolvem-se em meio a seu desespero interior.

Em luzes as trevas derrama o sangue de minha existência

Quem me dará como é o existir

Experiência do visível ou do invisível?

 

Antes de partir para as férias de verão, Xavier vai visitá-lo. Tito está triste, fala pouco, mas parece lúcido:

–  Sabe, Xavier, a loucura está me dominando.

O amigo francês sabe que é verdade. Mas, dessa vez, a verdade aparece materializada, concreta, iminente: sobre o guarda-roupa há uma corda. Xavier tenta levá-la, mas Tito alega que ela pertence ao patrão.

Na segunda semana de agosto, Roland Ducret vai ao pequeno quarto de Tito na zona rural: bate, bate, ninguém responde. Um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, vento, flores e pássaros. Nada se move. Balançando entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, o corpo de Frei Tito é descoberto no sábado, 10 de agosto de 1974.

Do outro lado da vida, ele encontra a unidade perdida.

Dois meses antes, Tito anotara num cartão que marcava um de seus livros: é melhor morrer do que perder a vida. Seu mergulho na morte foi uma deliberada atitude de quem buscou desesperadamente a vida em plenitude, lá onde ela se situa além de nossos limites físicos, biológicos e históricos. Suas exéquias fora solenemente celebradas na França e no Brasil.

Na fria e luminosa manhã de domingo 10 de novembro de 1980, Osvaldo Rezende e eu depositamos flores sobre o repouso de Frei Tito, no cemitério dominicano de Sainte Marie de la Tourette, sem tumbas e túmulos. Simples covas de terra com pequenas cruzes de madeira, entre os bosques de L’Arbresle. Na cruz que soube a Tito há esta inscrição:

 Frei da Província do Brasil. Encarcerado, torturado, banido, atormentado… até a morte, por ter proclamado o Evangelho, lutando pela libertação de seus irmãos.

Tito descansa nesta terra estrangeira.

“Digo-vos que, se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão” (Lucas 19,40).

 

Entre os papéis deixados por Tito, algumas anotações refletem suas últimas concepções políticas. Avaliam a luta travada no Brasil à luz das derrotas sofridas e da experiência acumulada. São prova evidente de que Frei Tito nada tinha dessa loucura que significa demissão frente às exigências do real. Ele levou a fidelidade ao extremo. Jamais cedeu. Por isso, revestia-se de autoridade suficiente para nos abrir novas esperanças:

 

A violência revolucionária é necessariamente a violência de uma classe e não de uma vanguarda. A vanguarda destina-se a orientar politicamente essa violência. No Brasil, foi a vanguarda que decretou a violência revolucionária, sem orientar politicamente a classe operária. E o que aconteceu? A guerra tornou-se uma guerra de vanguardas confusas e desorientadas. Não foi a guerra do povo, mas a guerra pelo povo. Nesse sentido teve um papel eminentemente ético(a guerra é justa). Mas não teve um papel político (a guerra é correta).

Em outro papel, uma proposta: O que é principal hoje? Construir uma frente democrática; dar às lutas de massas o caráter principal e primordial desta etapa. Finalidade: unir o povo e os patriotas em geral; objetivo das lutas de massas — criar uma consciência política e uma consciência de classe, dando destaque à construção, a longo prazo, de um partido dos trabalhadores.

A maioria dos textos deixados por Frei Tito não tem data. Foram recolhidos por Magno Vilela e Xavier Plassat. Este último anotou pacientemente todos os versículos sublinhados por Tito em seu exemplar da Bíblia, ainda hoje em mãos do dominicano francês.

Dois texto refletem a tormenta interior em que Tito vivia. O primeiro foi escrito, provavelmente, ainda em Paris, devido a referência à universidade.

XADREZ    medo de deixar a Ordem e sofrer atentado à vida

(estou sendo perseguido);

não posso voltar ao Brasil;

medo de estar sendo difamado;

medo de Não poder ser mais aceito na esquerda brasileira;

medo de ser morto ou torturado no Brasil;

medo de passar necessidade fora da Ordem;

não encontrei uma mulher;

medo de desestruturar psicologicamente;

medo de fracassar na universidade;

pessimismo face à minha resistência física e psicológica;

incapaz.

Sempre fui conhecido como um cara de esquerda; tenho um longo passado de militância; tenho fama de haver resistido às torturas e de tê-las denunciado; tenho certa cobertura. Resistir e lutar contra tudo e todos.

O segundo texto foi encontrado num livro que Xavier emprestara a Tito em junho de 1974, dois meses antes da morte dele. Não se sabe o significado das datas, mas as frases comprovam que ele se preparava para atravessar o limite das vidas, escolhendo o modo:

 

1947 — Vietnam

1954 : R..D.V.

É melhor morrer do que perder a vida.

Corda (suicídio) 60”. opção Bacuri

1918 — 1920 — 1974.

 

Tito defrontava-se com duas opções: matar-se por enforcamento, o que levaria cerca de sessenta segundos, ou suportar a “opção Bacuri”, a “tortura prolongada” em que vivia. “Bacuri” era o nome de guerra do combatente Eduardo Leite, do Movimento Revolucionário Tiradentes. Preso pelo delegado Fleury em 1970, esteve no cárcere do DOPS, de onde foi retirado de madrugada pelo chefe do Esquadrão, que teve o cuidado de olear as dobradiças das portas para que os demais prisioneiros não ouvissem nenhum ruído. Levado a uma fazenda, onde a repressão mantinha um aparelho de torturas, “Bacuri” foi seviciado semanas seguidas, pelo sádico prazer de o verem morrer atroz e lentamente. A família abriu o caixão quando o corpo lhe foi entregue: seus olhos haviam sido arrancados e as orelhas, cortadas. Parecia insuportável a Frei Tito seguir sofrendo, no espírito, essa “tortura prolongada”.

 

De modo exemplar, Frei Tito encarnou todos os horrores do regime militar brasileiro. Este é, para sempre, um cadáver insepulto. Seu testemunho sobreviverá à noite que nos abate, aos tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste em ignorá-lo. Permanecerá como símbolo das atrocidades infindáveis do poder ilimitado, prepotente, arbitrário. Ficará, sobretudo, como exemplo a todos que resistem à opressão, lutam por justiça e liberdade, aprendendo, na difícil escola da esperança, que é preferível “morrer do que perder a vida”.

Nele a tortura não foi apenas um método para se obterem confissões ou informações, como é hábito nos cárceres administrados por homens formados pelos serviços de inteligência norte-americanos. Nem consistiu uma espécie de vingança, de castigo que se aplica ao marginal derrotado nas disputas que o crime estabelece entre ele e a polícia. Tito foi sangrado na carne até que a for e o pânico atingissem o âmago de sua alma. Como fiéis guardiães de um sistema iníquo, delegados e militares esvaziaram a humanidade do jovem dominicano. Destruíram-lhe o universo psíquico, roubaram-lhe a paz, inocularam em sua subjetividade o veneno do medo e da angústia, profanaram seus símbolos religiosos, fizeram-no órfão da própria loucura. Viraram-no pelo avesso. Como uma fruta madura, ele foi sugado até que restasse apenas o bagaço triturado. Deixaram-no sobreviver para que experimentasse o horror de si mesmo. Dentro dele alojaram-se torturadores cujas vozes infernais ecoavam pela boca da legião de fantasmas. Sua consciência derreteu-se sob a pressão do delírio que, emergindo dos corredores profundos do inconsciente, reboava terríveis ameaças. Sua interioridade foi devassada como o lar sem portas e janelas exposto à ventania que traz a tempestade, a neblina e, por fim, a noite implacável.

Em busca de si mesmo, Frei Tito peregrinou pelo exílio. Encontrava-se banido também de seu próprio ser. Procurou-se em Santiago do Chile, Roma, Paris, Lyon. O espelho mágico distorcia a sua face límpida, terna, suave, exibindo-lhe os afiados dentes da expressão satânica de seus verdugos. A espada do poder seccionara a personalidade de Frei Tito. Havia uma lâmina de fogo eletrificada, estendia-se por dentro dele, impedindo-o de encontrar-se do outro lado. Ele era outro. Ele era muitos, na complexa dessemelhança do desamor, a da solidão, da perda irreparável de si mesmo. Carregava no coração o próprio inferno, no qual descera antes de morrer.

A morte foi seu último ato de coragem e de protesto. Sua extrema chance de ressuscitar na plenitude da semelhança divina que, originalmente, lhe fora conferida pelo Pai. Ao morrer, Tito matou seus algozes e recuperou a paz duradoura que lhe haviam seqüestrado. Libertou-se em definitivo  da onipresença que o dividia e atormentava, reencontrando a unidade e renascendo na totalidade do Amor. Lavado no sangue do Cordeiro, Frei Tito de Alencar Lima deixou-nos, entre outros, o poema “Quando Secar o Rio de Minha Infância”:

Quando secar o rio de minha infância
secará toda dor.
Quando os regatos límpidos de meu ser secarem
Minh’alma perderá sua força.
Buscarei, então, pastagens distantes
lá onde o ódio não tem teto para repousar.
Ali erguerei uma tenda junto aos bosques.
Todas as tardes me deitarei na relva
e nos dias silenciosos farei minha oração.
Meu eterno canto de amor:
expressão pura de minha mais profunda angústia.
Nos dias primaveris, colherei flores
para meu jardim da saudade.
Assim externarei a lembrança de um passado sombrio.

Paris, 12 de outubro de 1972.

Ruas de Memória

O lançamento oficial do Programa Ruas de Memória será no dia 13 de agosto, às 9hs, no Edifício Matarazzo (Viaduto do Chá, nº 15), 7º andar. Confirme presença no evento oficial do facebook: https://goo.gl/yxJVsD

Confirme presença também enviando um e-mail para: memoriaeverdade@prefeitura.sp.gov.br

Além de lançar oficialmente o Programa Ruas de Memória, o Prefeito Fernando Haddad também assinará neste dia os dois primeiros Projetos de Lei desenvolvidos pela Prefeitura de São Paulo em relação a alteração dos nomes dos logradouros que homenageiam violadores de direitos humanos.

Para entender a proposta
As marcas deixadas pela ditadura civil-militar foram fortemente impressas na relação dos paulistanos com o espaço público, na dimensão física e simbólica da cidade. Devido à cultura do medo gerada pelas perseguições políticas, as ruas e os espaços públicos da cidade deixaram de ser locais de expressão da cidadania, de encontro e da coletividade. Do ponto de vista simbólico, muitas homenagens a fatos e personalidades ligados a repressão permanecem locais de destaque do cotidiano da cidade.
É inaceitável que pessoas que notadamente cometeram crimes e graves violações aos direitos humanos continuem a ser reverenciadas como referências nacionais em nossas ruas, pontes, avenidas e praças.

Alterar os nomes dos logradouros
• Representa reparação simbólica fundamental para as vítimas diretas destes crimes;
• Demonstra o reconhecimento do Estado dos crimes cometidos por seus agentes e o posicionamento
de que não tolerará mais esses atos;
• Traz a tona para toda a sociedade a verdade sobre os fatos e personalidades presentes no cotidiano
das cidades;
• Ajuda a reconstruir a memória histórica do país a partir da valorização da cultura democrática e de
promoção dos direitos humanos.

O Projeto Ruas de Memória
Pensando nisso, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania lança o projeto Ruas de Memória com o objetivo de promover o debate público sobre esse período obscuro da história, sensibilizar a população sobre a importância de retirar esses símbolos autoritários de nossa cidade e quem sabe, efetivamente conseguir alterar o nome das nossas ruas – mudança que depende de Projetos de Lei a serem aprovados pela Câmara de Vereadores do Município.

Reflexões sobre frei Tito (a partir do seu testemunho, de suas cartas, seus escritos)

por Ivo Lesbaupin (fala do Seminário “Frei Tito e a Revolução Brasileira, no dia 09 de agosto de 2014)

Preparando-me para este evento, eu me perguntei por que o testemunho do Tito marca tanto, tem tanto significado – a ponto de se terem criado pelo Brasil afora (e também fora do Brasil) inúmeros centros, entidades, iniciativas que se nomeiam pelo Frei Tito: Centro Frei Tito de Direitos Humanos, Agência de Informações Frei Tito para a América Latina, Centro Acadêmico Frei Tito de Alencar Lima, etc. Por que particularmente os jovens ficam tão tocados por seu testemunho?

Certamente porque foi preso, torturado e morto jovem, aos 28 anos. Deu testemunho (mártir).

E pôde fazer seu relato, seu testemunho chegar tão longe, a tanta gente. Graças à contribuição de muitos que se esforçaram para que este testemunho não fosse esquecido e, ao contrário, fosse conhecido por muitos. Nós temos seu próprio relato da tortura, o “Batismo de Sangue” de Frei Betto – o livro e o filme -, várias peças de teatro, curta-metragens, livros. Eu participei de mais de vinte debates sobre o filme, sei que o Betto participou de muito mais. O livro da Leneide e da Clarisse, publicado este ano, só no Rio eu participei de três debates.

Pessoas que ficaram marcadas pela convivência com Frei Tito, como o seu psiquiatra, Jean Claude Rolland, como seu irmão, confrade, Xavier Plassat, que o acompanhou no seu último ano e graças à cuja convivência decidiu vir trabalhar no Brasil. Estas pessoas contribuíram para que seu testemunho fosse divulgado e conhecido.

Lendo ou relendo as cartas, entrevistas, escritos do Tito, me chamou a atenção a sintonia entre o que ele pensava naquele momento e o que nós pensávamos, mesmo distantes, em continentes diferentes e já sem contato direto, estou me referindo ao período entre 1971 e 1974. Chamou-me a atenção a sua opção radical, explicitada em diversas formas e a partir da qual questiona outras posições.

Eu gostaria de destacar, dentre os seus escritos, dois ou três elementos que considero relevantes para nós hoje.

De uma carta do Tito de 1971:

“Gostaria de não repetir o espírito pusilânime de que foram vítimas alguns de minha geração que também tinham os mesmos ideais mas que, muito cedo, sucumbiram diante das tentações. Os que combateram a igreja comprometida com o sistema estão hoje comprometidos com o mesmo sistema que tanto atacaram”.

É a crítica a tantos que tiveram posições combativas na juventude, de luta pela justiça social, de apoio a projetos de transformação social e que, no decorrer

da vida, “sucumbem diante das tentações”, abandonam aqueles ideais – “coisas da juventude” – e se tornam “adultos”, integrados ao sistema. E se comportam como se esta aceitação do sistema, a aceitação das regras injustas do sistema, fosse sinal de maturidade. Faz lembrar a parábola da semente, no Evangelho, onde algumas sementes caem no meio dos espinhos, germinam, mas pouco a pouco são sufocadas, [ver citação]

Nos debates de que temos participado este ano – na memória dos 50 anos do golpe -, vem frequentemente dos jovens, ou de pessoas mais jovens, a pergunta sobre “como é possível se manter firme até hoje”, qual a motivação que possibilita a alguém manter-se na luta mesmo depois de jovem, como manter-se comprometido com os ideais de justiça social, de igualdade, de respeito, de opção pelos direitos humanos.

Parece que os benefícios, as facilidades, o bom nome, ser bem considerado, ser bem tratado na mídia, são mais garantidos quando a gente se comporta de acordo com o que está estabelecido, com a norma, com o que os dominantes consideram certo. Quem destoa, ao contrário, tem como consequência ser mal visto, mal tratado e, na primeira chance, ser alvo de críticas, calúnia, difamação.

Tito rejeitou o caminho mais fácil.

Há um outro trecho, muito bonito, entre as cartas do Tito:

“Ainda verei a chama do espírito latino-americano brilhar bem alto, para dar ao novo mundo que nasce o testemunho vivo do verdadeiro humanismo.

Ainda hei de ver o esplendor de nossa cultura dizer bem forte o quanto tínhamos para dar mas, infelizmente, os donos do mundo nos impediram”. (1971)

Esta reflexão do Tito me lembrou a letra de um magnífico cântico de Zé Vicente, o Canto dos Mártires da Terra: “Haveremos de ver qualquer dia chegando a vitória/ o povo nas ruas fazendo a história/ crianças sorrindo em toda nação”.

Impressiona esta afirmação de esperança – “ainda hei de ver” -, a afirmação do “espírito latino-americano” e, ao mesmo tempo, a denúncia de que, até agora, “os donos do mundo” nos impediram de dar aquilo que tínhamos para dar. Impressiona porque é extremamente atual: os donos do mundo continuam a impedir que a sociedade mude, continuam a impedir que haja justiça, continuam a impedir que o bem estar chegue a todos.

Continuam a apoiar massacres de populações inteiras, em nome da boa ordem, como assistimos há pouco tempo. E conseguem forjar justificativas para convencer os demais da justeza de seus massacres.

Continuam a extorquir os salários, os benefícios, os empregos, os direitos da grande maioria, em nome do sistema, em nome da dívida, como temos assistido na Grécia, em Portugal, na Espanha e em vários países da Europa e do mundo.

Os donos do mundo são capazes de qualquer coisa, qualquer violência, qualquer mentira – como fazem diariamente através de boa parte dos grandes meios de comunicação – para manter a exploração da maioria e impedir a mudança. Para impedir que a grande maioria das pessoas possa viver uma vida digna, em situação de bem-estar, desfrutando plenamente de seus direitos.

O poder corporativo mundial se aliou à grande mídia – que dele faz parte – para manter e fazer prosperar o atual sistema de dominação. Neste sistema, a dívida é mais importante que a vida das pessoas, mais importante que as pessoas, mais importante que os direitos humanos. Ele inverte as prioridades e as coisas, o dinheiro, a propriedade, passam à frente. E a mídia trabalha para criar o consenso de que isto é justo, é assim que deve ser.

Eu li há pouco tempo um livro que se chama “Os mercadores da dúvida”. Os autores contam como alguns poucos cientistas, muito bem pagos por empresas, escrevem e questionam o aquecimento global, para que as pessoas fiquem em dúvida sobre o papel da atividade humana no aquecimento, para que não haja mudança na economia, na forma de trabalhar, no sistema produtivista e consumista em que vivemos. Para eles, pouco importa o que vai acontecer com a humanidade, o importante é impedir o conhecimento, para ‘ impedir a mudança.

Mas Tito acredita que isto vai ser superado – “ainda hei de ver” -, como nós acreditamos que, apesar do poder aparentemente insuperável, apesar das aparências, à custa de muita luta, muita dedicação, muito esforço, juntos, conseguiremos superar esta barreira organizada pelos “donos do mundo”.

Numa entrevista de 1972, tem uma pergunta sobre “a sua tentativa de suicídio em fevereiro de 1970. Porque queria se suicidar?”

Ele fez uma resposta bem didática:

“Foram vários motivos. Em primeiro lugar, queria apagar uma vez por todas o que tentavam divulgar sobre os dominicanos, deles terem traído a revolução.”

Esta preocupação aparece em vários textos do Tito, por exemplo, numa carta ao Frei Magno de 1972…

E certamente o testemunho dado pelo Tito contribuiu para questionar aquela versão.

Queria também que o público tomasse consciência das torturas que havíamos sofrido e que a imprensa e a polícia tentavam ocultar. Ninguém sabia o por que da prisão dos dominicanos.

Tito nos disse mais um motivo pelo qual pensou no suicídio na Operação Bandeirantes, em uma conversa depois que ele voltou do hospital para o Presídio Tiradentes: os torturadores haviam dito que chamariam um por um os demais frades para serem novamente interrogados. Ele quis, com seu gesto, com o escândalo que se criaria, impedir que isto ocorresse. E ele conseguiu.

Por fim eu queria denunciar a tortura num plano mais geral. Os bispos escondiam a tortura: “Confiamos no governo”. Já que o governo afirmava que no Brasil não existia tortura, os bispos iam repetindo a mesma coisa”.

Esta preocupação com a posição da Igreja era muito forte. Quando nós fomos presos, em 1969, a Igreja ainda hesitava na relação com o regime militar, havia tentativas de conciliação. As denúncias mais fortes sobre torturas eram feitas por D. Helder, em suas viagens ao exterior. Foi só a partir da nomeação de D. Paulo Evaristo Arns, em outubro de 1970, que ocorreu uma ruptura com o regime: a defesa dos direitos humanos se tomará, a partir de então, o critério de atuação da Igreja e não a preocupação em manter boas relações com o regime.

Há um fato que revela bem os dois tipos de Igreja que ainda estavam convivendo, situação que vai mudar em seguida: pouco depois que mudamos do DOPS para o Presídio Tiradentes, nós recebemos a visita de D. Agnelo Rossi, arcebispo de São Paulo (e o Tito se refere a esta visita, em seus escritos). Nós ficamos numa sala, onde estava presente também o diretor da prisão. E a primeira frase que D. Agnelo disse foi: afinal, o que foi que vocês fizeram? Porque os fiéis estão me cobrando. Teve um silêncio glacial como resposta.

Quase um ano depois, nós recebemos a visita do recém nomeado arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. Que não nos perguntou nada, disse apenas: eu quis manifestar a meus irmãos presos a minha solidariedade. Ele ainda não tinha tomado posse como arcebispo.

São duas visões, duas concepções, duas práticas de Igreja e felizmente prevaleceu a segunda.

Lembro que na prisão nos chegou às mãos um livro que foi marcante para nós: “A Igreja católica e a Alemanha nazista”. A leitura deste livro nos deixou extremamente preocupados, de que pudesse acontecer com a Igreja no Brasil algo semelhante ao que ocorreu na Alemanha: a omissão da grande maioria da Igreja frente às atrocidades que estavam ocorrendo. Já denunciávamos as prisões e torturas nas cartas que enviávamos a bispos, padres e leigos e nas conversas que tínhamos com aqueles que nos conseguiam nos visitar. Mas a leitura deste livro nos motivou ainda mais: era preciso, a qualquer custo, convencer os dirigentes da Igreja a tomar uma posição profética: felizmente, isto já estava acontecendo e estes anos, de 1970-1971 em diante, foram ricos em tomadas de posição e enfrentamento com as autoridades do regime. Desde as atitudes de D. Paulo, a carta pastoral de D. Pedro Casaldáliga, o pronunciamento do episcopado do estado de São Paulo, Testemunho de Paz, em 1972, os 3 documentos de 1973, que se tornaram um marco da Igreja católica no Brasil, Marginalização de um povo (do Centro-Oeste), Eu ouvi os clamores de meu povo (do Nordeste) e l-Juca-Pirama, o índio: aquele que deve morrer (de bispos e missionários) – documento este válido até hoje.

Finalmente, eu gostaria de chamar a atenção para algo que é mais geral na postura do Tito, nas suas reflexões, que é a exigência ética – que está presente de forma radical. Nós vivemos num tempo em que parece que a ética não é mais tão importante, ou que podemos deixar em segundo plano, porque haveria coisas mais importantes e mais significativas, em função das quais a ética poderia ser posta em questão. Os textos do Tito assim como o seu modo de agir afirmam radicalmente a exigência ética, como um valor do qual não podemos abrir mão, se queremos ser coerentes com os nossos princípios, com nossa intenção de transformar o mundo num mundo mais justo, mais solidário, mais fraterno.

Retomo aqui as observações que fazia no início: por que tantas pessoas, no Brasil afora, se inspiram em Frei Tito? A meu ver, buscam um exemplo maior, um testemunho de vida, de dedicação à causa – dos outros, dos pobres, de um povo – que é capaz de ir às últimas consequências. Frente a inúmeros exemplos negativos, de desistência, de abandono dos ideais, de ceder às tentações do mundo (dinheiro, poder), veem em Tito um exemplo de fidelidade, de amor, de entrega e se inspiram nele. Tito oferece um exemplo para a vida, para a luta pela transformação social, para a luta pela justiça.

O seu testemunho não foi em vão.

Em memória de frei Tito

por Alfredo Bosi (fala do Seminário “Frei Tito e a Revolução Brasileira, no dia 09 de agosto de 2014)

Caros amigos, parentes e companheiros de Fr. Tito de Alencar,

Caro Fr. Betto, em cuja pessoa saúdo todos os presentes a este seminário.

Sinto-me muito honrado em participar deste encontro em homenagem à memória de Fr. Tito de Alencar. Apesar de não ter conhecido pessoalmente Fr. Tito, posso dar testemunho da sua luta, da sua paixão e morte e principalmente do tempo em que ele viveu, os anos de chumbo da ditadura militar, fins da década de 1960 e começo dos anos de 1970.

Como tantos que vieram aqui para reverenciar a sua pessoa e refletir sobre o sentido da sua trajetória tão breve e tão sofrida, pertenço à geração que teve o privilégio (e sofreu os riscos) de compartilhar um momento decisivo da história da Igreja no Brasil e na América Latina. Assistimos e vivemos intensamente a mudança de rumo de uma doutrina e de uma prática que tirou um alto número de cristãos do conformismo para animá- los a assumir um engajamento social e político que preconizava reformas estruturais e, no limite, aderia a um ideal revolucionário.

Para entender o que nos movia e aonde queríamos chegar, recomendo, entre outros caminhos, a leitura do jornal criado pelos dominicanos das Perdizes, sob a inspiração de Fr. Carlos Josaphat, Brasil Urgente. Basta dizer que o último número sairia, não por acaso, na véspera do golpe de 31 de março de 64. Tito se ordenaria frade no ano seguinte: o seu engajamento amadureceu precisamente quando a ditadura já instalada iniciava a sua atividade repressiva que o tempo só fez aumentar.

Não me cabe, nem o tempo de que disponho o permitiria, seguir os passos de sua vida, hoje bem estudados por uma excelente biografia, intitulada “Um homem torturado: nos passos de Frei Tito de Alencar“, de autoria de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, que saiu recentemente pela Civilização Brasileira. Limito-me a comentar algumas passagens dos escritos reunidos de Fr. Tito.

Começo por um depoimento que ele deu, ainda preso, em fevereiro de 1970, e que seria publicado pelas revistas Look e Europeo, é o relato das sessões de tortura a que foi submetido quando levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes, a sinistra OBAN, que os próprios esbirros chamavam “a sucursal do inferno” . Pode-se falar da tortura infligida ao outro de vários modos. A psicanálise explora os meandros sangrentos do sadismo do torturador e as feridas raramente cicatrizadas no corpo e na alma do torturado. A sociologia de cunho marxista procura interpretá-la como forma extrema da violência da Direita que se vale do aparelho repressor do estado para esmagar os adversários de classe e de ideologia. A tradição bíblica ensina que o homem, marcado pelo pecado  original, pode entregar-se a forças demoníacas quando alimenta sentimentos de inveja, ódio e vingança. Até um filósofo de estofo crítico rigoroso e inclinado ao sereno discurso da razão, Emmanuel Kant, admitia, confessando embora não conseguir explicá-la, a existência do “mal radical” enraizado nas paixões destrutivas do ser humano. E os torturadores de Fr. Tito se propunham abertamente a aniquilar a sua alma, que infelizmente jamais alcançou liberar-se do fantasma dos seus perseguidores.

Depois de consideradas essas diferentes leituras, psicanalíticas, sociológicas, teológicas e filosóficas, sempre fica um resíduo de espanto e horror que não se tem como verbalizar: cedemos então à prudência de Wittgenstein, que nos aconselha o silêncio quando não sabemos o que dizer. Porque a tortura beira o indizível da perversidade absurda. Mas, se não conseguimos compreendê-la dentro dos limites de nosso pobre discurso cognitivo, sentimos que devemos denunciá-la, puni-la e erradicá- la para sempre do convívio cidadão, que é nosso ideal político. É o que nos inspiram os escritos de Fr. Tito, que estimulam os diferentes grupos da resistência a refletirem profundamente sobre as estratégias possíveis de combater o estado ditatorial e identificar os seus suportes poderosos. Suportes que são segmentos das classes dominantes enlouquecidas de medo e de rancor contra os seus críticos e oponentes, o poder armado interno, o imperialismo que o sustenta e o instrui na arte de melhor torturar; enfim, a omissão e o indiferentismo pesado dos falsos cristãos, clero ou laicato, coniventes com a repressão. O elenco é numeroso, e todos esperamos que as Comissões da Verdade tragam os seus nomes à luz da opinião pública.

Em um texto datado de Paris, 1973, Tito enfrenta lucidamente o problema número um dos resistentes: como lutar? Convém esclarecer que esse escrito foi redigido depois do malogro das vanguardas guerrilheiras, isto é, depois que seus líderes, Marighella e Lamarca, tinham sido mortos em plena luta. Em Paris alguns exilados brasileiros e latinoamericanos ainda sonhavam com uma revolução semelhante à de Cuba, a ser desencadeada pelo que teria restado daquelas vanguardas. Ainda ressoavam em muitos ouvidos as palavras de Sartre concitando os refugiados a apoiar a resistência armada. Tito as escutava com atenção, mas este seu texto deixa clara outra opção: a de uma lenta mas sólida organização popular, sem a qual toda e qualquer vanguarda não teria, como não teve, a necessária retaguarda.

Um dos cuidados recorrentes no discurso de Fr. Tito é o de evitar que a sua rejeição da luta armada como atividade primordial de resistência fosse interpretada como derrotismo. “Repito” – insiste – “não sou pessimista; procuro ser realista”. Como não lembrar a célebre frase de Gramsci nos escritos do cárcere? ” Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”, o que configura o mais lúcido realismo. São palavras suas:

“Seremos guerrilheiros no dia em que tivermos livre trânsito no meio das massas. Fora disso, realmente eu não vejo saída, e só assistiremos a mais prisões e mortes, uma depois da outra. E fico temendo um certo extermínio: o extermínio de uma geração de líderes marxistas, militantes de esquerda.” Era uma reflexão tristemente profética.

As entrevistas e os artigos de Fr. Tito são uma mina para os historiadores que se debruçarem sobre a combinação ( para tantos surpreendente) de catolicismo e esquerda radical. Lembro que essa aliança causou estranheza até mesmo a um Hobsbawm, especialista em história dos movimentos marxistas do Ocidente. Mas o que a ortodoxia leninista consideraria impensável, conhecedora como era da tradição reacionária do clero russo e de grande parte do clero ocidental, acabaria acontecendo na América Latina dos anos 1960 e 1970: a franca opção da Igreja pelos pobres e, no horizonte, por todos os explorados e oprimidos, vítimas do capitalismo e do imperialismo. Esse reconhecimento da existência de uma “jovem Igreja do Brasil”, estimulada pela “missão profética de João XXIII”, é a razão mesma da esperança de Fr. Tito que se exprime no artigo “A situação da Igreja no Brasil”, publicado no Front Brésilien d’Information, número 3, agosto de 1971, boletim editado por um grupo de exilados brasileiros na França.

Fr. Tito foi definitivamente um religioso formado por tudo o que a Igreja pensava de mais avançado não só nas matrizes intelectuais europeias, mas sobretudo a partir de uma práxis comunitária latinoamericana. As suas referências doutrinárias não são episódicas nem aleatórias: estão firmemente articuladas e remetem a uma corrente de idéias e valores encarnada por figuras centrais da nova Igreja: D. Helder Câmara e D. Fragoso, ativos no Nordeste, D. Candido Padim , crítico agudo da funesta doutrina de segurança nacional e, mais próximo do contexto dos presos políticos em São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns.

Ele também estava consciente do peso conservador da outra Igreja, omissa quando não conivente com o regime, e não deixava de citar alguns nomes de prelados que se notabilizaram pelo silêncio e até mesmo pela negação da prática das torturas. Naqueles, e não nestes, depositava a esperança de uma transformação social e ética que daria sentido àquele combate travado com um inimigo tão mais poderoso.

Se lermos os poemas que Fr. Tito compôs na França nos últimos anos de vida, o que impressiona é o contraste lancinante entre o negrume, a opacidade, as sombras que tinham invadido o seu íntimo, e uma tênue luz de esperança, de fundo \cristão e socialista, que nunca se apagou. Esses versos são quase sempre orações, meditações e projeções de fortes sentimentos de dor alternados com instantes luminosos de confiança:

Quando secar o rio de minha infância secará toda dor.
Quando os regatos límpidos do meu ser secarem, minh ‘alma perderá sua força.
Buscarei então passagens distantes.
Irei onde o ódio não tem teto para repousar.
Ali, erguerei uma tenda junto aos bosques.
Todas as tardes me deitarei na relva,
e nos dias silenciosos farei minha oração:
Meu eterno canto de amor expressão pura de minha mais profunda angústia.
Nos dias primaveris colherei flores para meu jardim de saudade.
Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio.
Tito de Alencar Paris, 12 de outubro de 1973

E este verso, extraído de um poema composto inicialmente em francês, “Si le ciei est terre”, abraça numa só frase os extremos que combatiam em sua alma:
En lumière e ténèbres se répand le sang de mon existence,
que ele mesmo traduziu passando da terceira à primeira pessoa:
Em luzes e trevas derramo o sangue de minha existência.

Arbresle, Lyon, 1974

Porque o domingo de Páscoa existe?

por Victor Alarcon, do Movimento Juvenil Dominicano do Brasil

Toda crença é política. É impossível separar o que se acredita do que se vive e se escolhe no dia-a-dia (inclusive o voto, o que você vê ou não na televisão, sua alimentação e o tipo de relação que mantém com as pessoas, amigas ou não).
Jesus Cristo foi um preso político, que foi assassinado pelo governo da época, com apoio da elite local da época. Sabe quando a classe média reclama que tem muito pobre no aeroporto e grita “fora Dilma”? Então, foi mais ou menos isso que aconteceu.
O Cristianismo enquanto atitude política é uma opção preferencial pelos pobres. Qualquer coisa que fuja disso e se diga cristão é mentiroso. Aí entra desde todo tipo de igreja caça-níquel dessas que compram horário na TV até as senhoras católicas viúvas da ditadura que apoiam intervenção militar.
As celebrações todas do sofrimento e morte de Jesus, no meu ver, são uma metáfora do sofrimento e morte de qualquer ser humano. Principalmente dos mais pobres. (Principalmente é diferente de exclusivamente, ok?) E essa é uma beleza que até onde eu sei só existe no cristianismo. Um Deus que se faz humano, que vive a vida humana em todas as suas dimensões, principalmente no sofrimento. Portanto ser cristão é uma atitude que transcende a política, passa por todas as questões que envolvem o ser humano.

11026125_928449753842879_2847809666586962637_nPáscoa é tempo de lembrar o quanto somos fracos e incapazes. O quanto somos dependetes. E não me venha com o papinho de “eu não preciso do seu Deus”, pois somos dependentes de uma série de coisas e isso é do ser humano, que é mortal. E mesmo sendo frágeis cremos que sempre existe uma possibilidade de sermos mais felizes e de fazermos as pessoas à nossa volta mais felizes.

A sexta-feira santa é a lembrança disso, de que existe morte, políticas que excluem, inocentes que morrem, gente que acha que vai ser feliz sendo rico e que mata pra ser rico. Já o Domingo de Páscoa existe para lembrar que depois da morte existe ressurreição. E eu não estou falando de uma ressurreição fisiológica! Tô falando da possibilidade de sermos mais felizes, apesar de toda a porcaria que o mundo vive. Pra lembrar a mãe negra que a morte de seu filho, preto inocente e pobre como ela não foi sem motivo. Que um dia isso vai acabar e que um dia viveremos em um mundo onde todos serão igualmente felizes, independente de qualquer coisa. Esse sonho é claramente político, mas não é só político.

Feliz Páscoa com menos chocolates, coelhos e essas porcarias que só te faz falsamente feliz.
Feliz Páscoa com a certeza de que a ressurreição virá um dia.